Sinopse





"Eu sentia um chamado, sabia que ele me aguardava. A busca por meu filho foi além de tentativas de engravidar. Foi na adoção que o encontrei. E esta certeza incontestável, inclusive juridicamente, de que ele é meu filho, filho da minha alma, do meu coração, foi o que me inpulsionou a prosseguir na busca. Só mesmo o amor de uma mãe e de seu filho pode explicar os laços que os unem."

Bia Maia




Nosso Bebê, uma semana depois de chegar em casa





Apresentação de Leozinho ao Senhor




Nosso primeiro Natal





Com a mamãe na piscina

Indo para a escolinha




Com o Papai na Base Aérea















Capítulo 26 - Ma-mã

Ontem Leozinho começou a falar ma-má. Só quem é mãe sabe a emoção de ouvir seu filho te chamar de mamãe.

Contei toda essa história, totalmente real, para meu filho Leozinho conhecer nossa busca por ele para que todos que fizeram parte desta aventura de amor saibam que não esquecemos: meu marido, minha família, Miguel, Dra.Cíntia, Dra. Sandra e a todos os amigos que deixaram seu amor registrado não só nestas páginas, mas nas histórias do dia-a-dia.

Minha barriga do coração já aguarda por outro bebê. Sei que já existe alguém aguardando por mim também. Peço a Deus que nosso encontro aconteça o mais breve possível, pois meu filhinho com certeza está precisando de meu amor.

Capítulo 25 - A Morte de Miguel

Quando conheci Miguel, meu primeiro filho do coração, e dei a ele parte de mim, não pensava que poderia ter lutado por ele. Quando recebi um não daquela mulher, mesmo ela estando certa, não lutei por ele. Só aceitei. E imaginava que aesta altura ele estava bem, com uma família, sendo bem criado e amado e feliz. Mas Miguel morreu.

Quando minha sogra me contou, eu senti a dor de quem perdeu um filho. E perdi mesmo, porque em algum momento ele foi meu. E eu nunca esqueci o seu olhar.

Como me senti culpada por isso. Eu deveria ter lutado por ele. Porque ele ainda não havia sido adotado? 4 meses depois ele ainda estava no orfanato. É muita burocracia. Senti como se a burocracia trabalhasse com uma foice na mão, quando o assunto é criança órfã.

Ele morreu por causa de uma febre. Imagine como não estava fraco. Imagine como não estava carente. E quantos mais vão morrer? São filhos desesperados por pais e pais desesperados por filhos.

Pedi perdão a Deus por não ter lutado por ele. Miguel, me perdoe por não ter lutado pra te salvar.
Miguel foi um anjo que abriu meu coração para a adoção. Vou fazer por Leozinho o que não fiz por ele.

Capítulo 24 - O Grande Dia da Audiência

Léo chegou a chorar de ansiedade quando acordou. Leozinho acordou normal, como se fosse um dia comum. Eu, obviamente, estava um pilha de nervos.

A mãe biológica dele chegou um dia antes e estava hospedada num hotel num bairro vizinho ao nosso. Léo providenciou tudo. Ela não pode ir no mesmo carro que eu, pensei. E também não conseguirá chegar sozinha. Peguei o carro de minha irmã e Léo a levou no nosso. É claro que Leozinho estava comigo.

Embora na intimação não constasse a necessidade da presença da criança, achei melhor levá-lo. Eu acreditava que seria a última vez em muitos anos que ela o veria, então, segui os conselhos de minha psicóloga Cíntia. Ela achava importante registrar estes momentos todos juntos.

Léo saiu na frente para busca-la e também as testemunhas. Eu, saí pouco depois. Fui seguindo o caminho que já havíamos feito tantas vezes até o juizado. Caminho conhecido e sempre cheio de recordações. Mas desta vez a emoção foi demais. Eu estava tão nervosa que, de repente, esqueci como chegar lá. E lá estava eu, minha mãe, Leozinho e a babá, no meio do trânsito, perdidos, porque eu, simplesmente, não sabia mais chegar no juizado.

A sensação era de que estava em outra cidade. Olhava para os prédios que cercavam a avenida e não reconhecia o lugar. Foi um branco total. Depois que entrei na rua errada, foi que comecei a me situar do que eu havia feito. Faltavam 10 minutos para a audiência e eu estava presa num engrarrafamento, na rua errada, na avenida mais movimentada da minha cidade. E comecei a chorar.

Chorar não, eu berrava mesmo: “vou perder meu filho!”, “vou perder meu filho!”- eu gritava. Um homem do carro ao lado chegou a parar o carro do meu lado pra ver o que acontecia comigo. Eu não conseguia mais dirigir. Foi quando minha mãe me confortou e voltei ao meu estado normal.

Neste momento eu orei: “meu Deus, me ajude”. Era a única coisa que eu conseguia pedir. Mas pedi de todo coração, com todas as minhas forças. E lembrei da música que cantaram quando Leozinho foi apresentado a Deus na igreja: "Deus cuida de mim, à sombra de suas asas, Deus cuida de mim, e não ando sozinho, não estou sozinho pois sei, Deus cuida de mim".

Chegamos atrasados 30 minutos na audiência. Eu nem subi de elevador. Fui de escada mesmo. Cheguei sem fôlego, mas minha advogada disse que eu ficasse tranqüila. Conversou com a juíza e estavam me aguardando.

Ela estava lá na ante-sala. Estava aparentemente calma. Eu entrei sozinha na sala da audiência. Ela esqueceu o documento de identidade no carro e Léo foi buscar.

Na sala me aguardavam a juíza, minha advogada, duas testemunhas. Um rapaz digitava e uma mulher acompanhava a juíza. Minha advogada, maravilhosa como sempre, me acalmou quando disse que provavelmente sairíamos dali com um mandato para a nova certidão.

A juíza me perguntou sobre minha convivência com o bebê. Era ótima. Perguntou se eu conheci a mãe biológica dele antes do parto. Disse que não. Neste momento ela entrou na sala. A juíza perguntou pra ela se havia certeza no que ela estava fazendo. Perguntou se ela não iria se arrepender. Ela disse que não. Em tudo ela disse que não. A juíza então deu a sentença. Leozinho era nosso filho.

Saí da sala e fui com ela até uma saleta, aonde eu pedi para minha mãe me aguardar com Leozinho enquanto a audiência acontecesse. Não deixei que ela visse o menino antes da audiência. Egoísmo meu? Acho que não. Hoje eu sei que mesmo se ela tivesse visto a história seria a mesma, pois a decisão já estava tomada.

Quando ela o viu, sorriu. Eu disse pra ela carregá-lo. Ela o pegou nos braços. Não pude deixar de sentir uma dor no meu peito. Abracei forte minha mãe. Ela não estava entendendo nada. E eu disse: “ele é nosso”. Minha mãe chorou discretamente.

Tiramos algumas fotos com ela. Era importante pra ele ver que ele não foi uma criança abandonada, ou tomada à força. Foi uma decisão consciente, baseada numa situação sem expectativa de melhora real. Uma decisão que salvaria a vida dele, afinal ele estava muito fraco e anêmico.

No estacionamento nos despedimos. Não houve lágrimas. Mas ela estava com aquele mesmo olhar do dia em que assinou a autorização de viagem. Um olhar triste, mas certo de que estava fazendo o melhor.
Eu, meu marido e nosso filho nos envolvemos num abraço. Minha família. E só Deus poderia levar Leozinho de nós.

Capítulo 23 - No Clube com Nosso Amor

Beijinhos pra cá, abracinhos pra lá. O dia estava lindo e estávamos comemorando 1 mês de Leozinho em nossas vidas.

Ele estava uma fofura de sunguinha. Se assustou quando entrou pela primeira vez na piscina. Logo ele que entrou na água, choramingou um pouquinho... mas foi só um pouquinho.

Minha tia Rosangela estava lá e não desgrudava dele. O clube não estava cheio e mesmo com tanto sol o vento estava forte, o que não permitia que Leozinho ficasse na água muito tempo. Cuidados de mãe, sabe?

Um mês passou tão rápido! E como ele mudou em um mês! Estava todo durinho, falava neném, imitava gestos, nos reconhecia e aos primos e avós, reconhecia músicas do Cocoricó, imitava um carrinho... já sabia pedir dengo, colo, adorava ficar em nossa cama...o dentinho estava saindo, engordou mais de 1 kg e cresceu mais de 1cm!

E em minha vida e na de Léo, no primeiro mês amadurecemos 1 ano! Este intensivão nos fez crescer e nos fortaleceu como casal. Adorava acordar de manhã e coloca-lo em minha cama. Ele tomava um mingauzinho e dormia de novo... e eu aproveitava para dormir também! Ele era muito bonzinho. Estava realizada com o filho que Deus havia me dado. Saudável, inteligente, bonito, bem-humorado, bom-de-boca...

Estava muito feliz por ter encontrado meu filhinho. E estava muito ansiosa pela terça-feira que se aproximava.

Capítulo 22 - Uma Guarda Judicial

Uma cliente nossa era advogada e acertamos com ela pra que seu escritório assumisse nosso caso. O seu trabalho era conseguirmos a guarda do nosso filho.

É o medo de toda pessoa que adota sem intermediação do juizado. Quando a mãe doa a criança diretamente para um casal, ela pode pedir o filho de volta a qualquer momento. Até sair a guarda definitiva.

Cada vez que o telefone tocava ficava com medo de ser minha tia de Valença. Orava todos os dias para Deus ajudar a mãe biológica dele a se sentir confortada. Orava pra que ninguém da família viesse a requerer a guarda do menino. E o que eu mais desejava era que chegasse logo o dia da audiência e que pudéssemos finalmente ter uma certidão de nascimento com nossos nomes como pais.

A audiência foi numa terça-feira e nós já enviamos dinheiro pra minha prima vir com a mãe biológica do nosso filho de Valença para Salvador. Já havíamos reservado uma pousada.

Estávamos tão ansiosos... a advogada disse que se a mãe mostrasse firmeza na sua decisão o juiz daria a guarda definitiva na hora. Eu não acreditava muito que isso fosse acontecer, pelos depoimentos que escutava. Mas, também era muito improvável que eu tivesse um filho ainda naquele ano e eu estava ali com meu bebê.

Passamos mais uma vez pela análise da psicóloga, a Dra Cíntia. Maravilhosa como sempre, e ela quis saber de todos os detalhes.Ao final da análise deu o parecer favorável.
A analise da assistente social demorou mais de acontecer. No dia que ela veio o bebê estava dormindo aqui no escritório, no carrinho. Ela veio rapidamente e foi embora rapidamente.

Léo me confessou que chorou ao pensar que a mãe biológica poderia requerer o bebê. Eu orei muito a Deus, pedindo que se fosse pra devolver alguma criança, que Ele não deixasse que ele chegasse aos meus braços.

Ele pode não ter saído de minha barriga, mas entrou no meu coração – como já disse a esposa de Juca Chaves ao adotar sua filhinha, a Clara. Fiz minhas as palavras dela.

Capítulo 21 - A Chegada

Minha família fez uma festinha de recepção para nosso bebê. Estávamos exaustos da viagem, com os nervos a flor da pele, coração a mil, e quando vimos nossos parentes lá, dando gritos de alegria com nossa chegada, com bolinho, painel e bolinhas, as lágrimas vieram nos olhos.

Foi lindo e nunca vou esquecer. Ele foi de mão em mão, sorrindo pra todo mundo. Que menino risonho. Só estava um pouco mal-cuidado. estava um pouquinho magro, mas sua simpatia mostrava que ele era uma criança feliz.

Depois desta curta festinha fomos pra casa. Eu, Léo e nosso filho. Me senti completamente perdida. Ele estava dormindo em meus braços. Mas eu não sabia como agir. Em meio ao meu desespero, chorando, liguei pra minha mãe e pedi que viesse pra minha casa. Só tinha vontade de chorar, e mais nada.

Minha mãe chegou, meu acalmou e me ajudou com as minhas primeiras atividades maternas. Minha irmã e meu sobrinho vieram juntos e a noite ficou serena.

Dormimos, e nossa primeira noite com ele foi muito tranqüila. Mas de manhã, todos os músculos de meu corpo doíam. Como será que ele estava se sentindo numa nova casa, com uma nova mãe e agora com a figura paterna?

Ele acordou e sorriu pra mim. Era muito fofo este menino. Tomou o mingauzinho, um banho e ficou todo cheiroso.

Era domingo e fomos para o culto matutino na expectativa de apresentar o Leozinho. Quando chegamos as meninas do coral correram para vê-lo. Descobri então que estavam preparando uma surpresa pra mim, um chá de fraldas para a terça-feira. Fingi que não ouvi, pra não estragar a surpresa.

Alex foi falar com o Pastor e aguardamos sermos chamados. O ministério de louvor tocava uma música linda e eu não estava contendo minhas lágrimas. Estava muito feliz. Agradecia tanto a Deus por estar ali. Pensar que uma semana atrás eu estava na viagem missionária, tão triste porque não havia encontrado meu filho, e Deus já havia reservado tudo pra nós.

A música cantada no culto dizia: "Deus cuida de mim, à sombra das suas asas, Deus cuida de mim, eu amo a sua casa... e não ando sozinho, não estou sozinho pois sei, que Deus cuida de mim... Deus cuida de mim..."


Antes do pastor nos chamar, ele perguntou para a igreja: ”Quantos aqui são filhos adotivos?”. Ninguém levantou a mão. Acho que se havia ali algum filho adotivo, ele não deveria estar esperando a pergunta. “Quantos são filhos de Deus?”- perguntou o pastor. Todos levantaram a mão. O pastor disse que se somos filhos de Deus, somos todos filhos adotados, pois a Bíblia fala que fomos feitos filhos de Deus por adoção. E o pastor nos chamou à frente.

Ele pegou nosso filho nos braços, orou e nos emocionamos muito. Foi maravilhoso. O ministério infantil entregou uma Bíblia para nós. Era a Bíblia do bebê.

A igreja toda se alegrou e depois o levamos para o berçário. Agora, nosso filho iria freqüentar a escola dominical, começando pelo berçário.

Meu bebê, no berçário. Meu bebezinho.

Capítulo 20 - O Encontro com Nosso Bebê

Confirmado. A mãe ainda estava com o bebê e queria dar o filho. Não conseguia acreditar. Não conseguia nem pensar. Era ele, nosso filho. Todos os medos vieram à tona. Lembro de Miguel, lembro das histórias que ouvi sobre adoção consensual... meu Deus, não me deixe conhecer se for para o perder...

Arrumamos as malas nas pressas, mas resolvemos ir apenas no outro dia. Havia muito o que preparar até ele chegar aqui. Não havia berço, e era um bebê de quatro meses. Um menino. Não havia uma peça de roupa sequer, apenas um quartinho com uma cômoda, uma mini-cama e um guarda-roupa.

Fomos com minha mãe e minha irmã no shopping comprar uma roupas, lençóis, toalhas. Minha cunhada comprou mamadeiras, chupetas e pomadas. A sacolinha foi herdada de meu sobrinho Gabriel. O sonho estava se materializando.

De manhã bem cedo já estávamos na estrada. Contava os segundos para conhece-lo. A mãe biológica dele teria que assinar uns papeis para que eu pudesse sair com ele da cidade. Precisava encontra-la. O menino ela já havia deixado na casa de minha tia Maria um dia antes.

Pegamos um ferry-boat e mais duas horas de estrada. Era um misto de felicidade e medo... e a cidade se aproximava.

Chegamos em Valença cerca de 04 horas depois de nossa saída de casa. Eram 09:30 da manhã. Assim que começamos a estacionar o carro da porta da casa de minha tia, a minha prima saiu com ele nos braços. Eu praticamente pulei do carro. E meu coração quase pulou da minha boca. Ele era lindo. E sorriu pra mim.

Peguei o bebê nos meus braços e minha prima o chamou de Leozinho. Elas sabiam que mudaríamos o nome da criança para Alex Jr, então trataram de colocar logo um apelido nele. O pai, Léo. O filho, Leozinho. Ele continuava sorrindo. E eu estava completamente apaixonada. Pronto, meu coração e minha vida naquelas mãos pequenininhas. Eu o cheirei, beijei, não queria me esquecer de nenhum detalhe dele, dos seus olhos grandes e vivos, do seu sorrisinho brincalhão. Minha mãe logo pegou Leozinho nos meus braços e começou a beijar... e ele riu muito! Meu marido era só felicidade... Finalmente achamos nosso filho!

Era ele. eu tinha certeza. O peguei no meu colo novamente e ele se aconchegou em mim. Meu marido estava com medo de carregar, pois não sabia segurar um bebê. Estávamos tão felizes que parecia que estávamos num sonho lindo. Mas para este sonho começar a ser real, eu precisava de uma assinatura.

Deixamos nosso filho com minha mãe na casa de minha tia e começamos nossa busca. Fomos na casa da prima damãe biológica, próxima dali. Ela já havia voltado para a roça onde morava. Duas primas delas nos acompanharam até lá.

Passamos na casa da avó, para ver se ela não estava lá. Nada. E seguimos caminho para a roça. Muita estrada, muito asfalto. Foram mais ou menos mais 20 minutos de estrada e chegamos na casa dela. Era uma casinha de blocos, sem reboco. Telhas de cimento e muitas crianças. Sobrinhos dela. Uma mulher não muito feliz atendeu a porta e disse que ela estava na casa de uma amiga.

Eu já estava ficando preocupada. “Meu Deus, será que ela desistiu e não quer que a encontremos?” – era o que vinha na minha cabeça. E fomos para a casa da tal amiga. Estrada de barro. Mais 20 minutos. O minutos mais longos de minha vida.

As primas dela eram simpáticas. Imaginei como seria o nosso encontro. Enquanto ainda andávamos pela estrada uma das primas exclamou: ”olha ela ali!”. Alex parou bruscamente o carro. A prima dela pulou do carro e a chamou. A estrada tinha árvores que me impediam de ver a mulher. Só vi que alguém se aproximava. Era uma mulher morena. Coberlos negros, crespos. Finalmente o rosto. E um inesperado sorriso. Enorme sorriso. Tive medo, mas procurei mostrar confiança. Me apresentei e fui direto ao assunto: “para sairmos da cidade com se filho, precisamos que assine uns papéis e nos dê cópia de seus documentos”.

Ela prontamente entrou no carro e disse para seguirmos para a casa dela. Quando ela sentou no carro, Alex mal tinha dado a partida e eu perguntei: “menina, você não vai se arrepender disso?” – é óbvio que eu queria ouvir um não. E foi o que eu ouvi. “Eu ainda não senti saudades dele”, foi a resposta. Fiquei pensando nesta frase o caminho todo. “Ainda” foi a palavra que mais me preocupou.

Chegamos na casa dela e entramos. A irmã se retirou da sala. Ela era contra a doação do menino. As filhas da irmã dela eram crianças lindas. Mas o estado de pobreza as maltratava. Nos acomodamos no humilde sofá e li a declaração pra ela. Ela estava nervosa, não queria ler. Acho que estava com vergonha, não sei.

Mais uma vez, antes dela assinar, perguntei se ela tinha certeza. Ela, de novo, falou aquela frase “ainda não seni saudades dele”. Eu fiz de propósito. Perguntei de novo porque sabia que a resposta seria essa. Era a oportunidade que eu tinha pra dizer a ela o seguinte: “quando você sentir saudades dele ele vai estar muito longe daqui”. Ela me encarou, entendendo a seriedade da atitude. E assinou assim mesmo.

Alex saiu com as primas para tirar cópias dos documentos enquanto assinávamos tudo. A mãe dela não estava lá. Expliquei pra ela que haveria em Salvador uma audiência com o juiz, que assim que fosse marcada ela seria informada, e eu providenciaria tudo para que fosse levada até o juizado.

Alex retornou. Levantamos para ir embora. Não nos tocamos hora nenhuma. Nem quando nos apresentamos, nem quando nos despedimos. Não havia clima para beijinhos, abraços ou apertos de mão. Não era uma amizade, um favor, ou um negócio. Era a doação de um filho. Mantivemos uma distância. Tenho certeza que ela sentiu uma dor. Pelos olhos dela dava pra ver. Mas ela também viu meus olhos. Agora, o menino era meu.

Entramos no carro e antes de irmos bati uma foto da casa. A irmã dela apareceu na janela. Ela não gostava daquilo. Não gostava de nós. Queria o sobrinho dela ali, e não com estranhos.

Chegamos na casa de minha tia e ele estava dormindo. Eu não fazia idéia de como agir. Não sabia fazer um mingau sequer! E não havia tempo para muita coisa. Precisávamos pegar a estrada e chegar em Salvador ainda com o dia claro.

Capítulo 19 - Um Menino de Valença

Minha tia Maria me ligou de lá da sua cidade, Valença. É a mesma aonde eu almocei no dia anterior, com o pessoal da igreja, na volta da viagem missionária. Se eu soubesse que ela tinha algo tão importante pra falar comigo, teria ido na casa dela ao invés de almoçar.

A filha dela, minha prima Taiana, disse que uma amiga dela quer dar o filho. Um menino de quatro meses. Disse que ela quer dar desde que o menino nasceu, mas não achou pra quem entregar a criança, e não quis deixar num abrigo.

Quando minha tia me ligou, eu já imaginei que fosse isso. Ela não tinha muitos detalhes, só disse que a garota era de maior, não se sustentava, não era casada, e que era o primeiro filho dela. Disse que o pai da criança foi quem quis dar assim que soube que a garota estava grávida. Na verdade eu não entendi direito qual foi a história dela.

Marcamos às 19:00. Neste horário eu ligaria pra minha tia e a prima da mãe biológica estaria lá pra acertar detalhes comigo. Estava muito ansiosa. Sentia um misto de felicidade e medo. Felicidade porque achava que desta vez era ele, meu filhinho. Medo porque já escutei tantas coisas sobre adoção consensual... mães biológicas que se arrependem, avós que lutam pela guarda, e tantos casos...

Deixei nas mãos de Deus. Eu só não queria ter que devolver o menino nunca. Eu só queria que, quando ele viesse para meus braços, que ele fosse meu, só meu, e que ninguém o tomasse das minhas mãos.
Eu estava contando cada segundo pra aquele telefonema.

Capítulo 18 - No Campo

Saímos atrasados do ponto de encontro, na igreja. Normal. Se saíssimos na hora é que seria estranho, afinal, são duzentas pessoas se encontrando, conversando, brincando e arrumando suas bagagens. Chegamos em Camamu cerca de 6 horas e muitos lanches depois.

A viagem de ônibus foi tranquila, animada. A expectativa pra quem vai pela primeira numa viagem como estas é grande. Ainda mais com os boatos que ouvíamos, sobre ter que andar em mangues, pular na água com a bagagem e coisas do gênero.

O coral estava levando seu equipamento de som, composto de enormes caixas de som, mesa de som, microfones, cabos, e muitas outras coisas. Para carregar cada caixa era necessário quatro homens. Além disso os coristas ainda levavam suas bagagens e seus colchonetes.

Embarcamos num barco alugado e viajamos por mais duas horas e meia até Barcelos do Sul. Pelo menos até perto de lá. Para nossa infelicidade os boatos eram verdadeiros. O barco só ia até o cais daquele lugar lindo se e somente se a maré estivesse alta. Chegamos e a maré já estava baixa. Nos restou pular na água, com bagagens, colchonetes e equipamentos. Lama no joelho, água na cintura.

Andamos cerca de 500 metros assim, e nem sabíamos o que nos aguardava ao chegarmos naquele lugar belíssimo: um belo morro que de tão íngreme precisávamos usar as mãos para subir. A cena era inacreditável. Parecíamos desbravadores. O mais incrível era que pessoas moravam lá.

Os moradores eram muito gentis. Nos ajudaram a localizar a igreja, a carregar a bagagem. O lugar só tinha uma escola, até a quarta série, e um posto de saúde. Ah, e havia a praça aonde iríamos cantar logo mais.

Demoramos tanto de desembarcar e de chegar à igreja, que deu tempo apenas de tomar um banho, tomar café e irmos para a praça cantar. Ajudamos o irmão do som a montar as caixas e depois fomos fazer nosso trabalho, cantar por duas horas em pé.

Enquanto cantávamos eu olhava as crianças da cidade. Tão pobres, tão necessitadas. Será que não poderia levar alguma comigo? me senti mal com este pensamento. Achei feio pensar que poderia pedir pra alguém abrir mão de seu filho só porque eu tinha um quartinho esperando por ele.

Esqueci temporariamente a história e voltei a me concentrar na música. Mesmo tão cansados, foi a melhor apresentaçao do coral. Muito emocionante. Os olhos das pessoas brilhavam. As crianças estavam quietas, prestando atenção. A noite acabou e fomos dormir.

No outro dia lá estava o coro novamente arrumando suas malas de manhã bem cedo, para mais um vez entrar num barco e ir para outra ilha. Mas desta vez esperamos a maré subir.

Quando chegamos em Ilha Grande já estava na hora do almoço. Se me apaixonei pela beleza de Barcelos do Sul, por Ilha Grande eu era capaz de entrar num mangue novamente. Mas graças a Deus não foi necessário. A única dificuldade do lugar era o fato de termos que andar com malas e equipamentos por 30 minutos até chegarmos na igreja.

A apresentação seria de noite. Almoçamos e tinhamos a tarde para descansarmos, e eu aproveitei para explorar um pouco o lugar. Fomos até a praia. O lugar era paradisíaco. Parecia que eu estava num quadro pintado. Era tudo tão perfeito, tão lindo. Mas as coisas não estavam lindas dentro de mim. Eu continuava com aquela tristezinha no meu coração, por ainda não ter meu filho. Já era novembro, e com tanto feriados e com a greve do juizado, dificilmente conseguiria ter meu filho antes do Ano-Novo.

Caiu a noite e lá foi o coral para a praça. Lá em Ilha Grande as coisas já eram mais evoluidas. Havia pizzaria, mercado, clube de festas, escolas, orelhão! um avanço em relação a Barcelos do Sul.

A apresentação mais uma vez foi linda. A praça estava cheia de novo. Quando acabamos, resolvemos permanecer na praça e ficamos brincando como crianças. É como se não quiséssemos que aquele momento acabasse. Mas o cansaço veio forte e mandou todos para seus colchonetes.

Na volta pra casa, no outro dia, voltei mais triste ainda. orei muito no ônibus, pedindo a Deus que me desse um filho. Nem as brincadeiras do coro em alegravam mais. Só conseguia olhar a bela paisagem que passava, e ficava a me perguntar porque eu não podia gerar. Porque eu?

Paramos em Valença pra almoçar. Meu pai nasceu lá, e havia alguns parentes meu ainda morando ali. É uma cidade que tem muitos locais turísticos. Passei muitas férias minhas em Valença. O lugar me trazia boas lembranças.

Só havia 20 minutos para o almoço, por isso não deu tempo de ir na casa de minha tia Maria. Ela era a responsável por me inscrever no juizado de lá. Quando liguei pra ela um mês atrás não sabia que ela havia levado isso tão a sério.

Passei o domingo triste. Chegamos em Salvador de noite, após muitas lágrimas escondidas e após quase batermos o ônibus. Foi uma viagem realmente inesquecível.

Capítulo 17 - A Viagem Missionária

O coral iria participar de uma viagem missionária para um lugar chamado Barcelos do Sul. Ah, sim, eu participava do coral da igreja. Sou um contralto, aquela voz feminina mais grave. Participei do coral durante muitos anos, e era a minha atividade favorita. Lá eu tinha amigos e amigas, me divirtia e cantava. Era ótimo.

No começo foi difícil. A respiração diferente, sustentar tantos tempos, colocar a voz de forma correta...mas depois peguei o jeito. Mas o coral não se apresentava só na nossa igreja. Se apresentava em igrejas da nossa cidade, mas desta iríamos mais longe um pouquinho... são 6 horas de ônibus, mais 4 horas de barco, mais uma caminhada de aproximadamente 40 minutos até chegarmos na igrejinha local.

Há uns quatro meses atrás quando o coro começou a se organizar para esta viagem, eu achava que não iria. Eu acreditava que a esta altura já estaria com meu filho, portanto, não daria para participar de uma aventura destas com uma criança.

Infelizmente me enganei. Ou felizmente, Deus é quem sabe. Meu filho não chegou e resolvemos que iríamos viajar com o coro. Léo não participa do coral, mas já havia feito amizade com todos os rapazes de lá. Gostávamos de fazer tudo juntos, mas a idéia de Léo cantar não emplacava mesmo. Ele não poderia ser perfeito, não é?

Iríamos sair às 05:00 horas. Nossa sacola precisava ser modesta, com tudo para a viagem, afinal, os homens iriam dormir na igreja, e as mulheres, numa creche. Fala a verdade, dava pra levar uma criança numa aventura assim? Dez horas de viagem, dormir em colchonetes, levar os pratos, talheres, papel higiênico, lençóis, toalhas... tudo!

Quando eu pensei em ir, simplismente pensava que seria muito divertido. Depois um pensamento nasceu no meu peito, e foi crescendo, crescendo... será que lá não existem crianças que precisam de uma família?

É um lugarejo muito pobre. As mulheres abençoadíssimas parem um filho por ano... adoção consensual foi o que veio na minha mente.

Ao mesmo tempo que senti uma euforia por dentro ao pensar em encontrar meu filho lá, tive medo da adoção consensual. Medo da mãe biológica querer seu filho de volta, de querer cobrar algum bem material para nos deixar em paz...

Está nas mãos de Deus. Eu não queria cair em nenhuma cilada de compra e venda de criança, e não queria deixar passar a oportunidade de ser mãe. Orei pra que Ele me dê uma visão além dos olhos de uma mulher ansiosa pra ter um filho pra chamar de seu.

Capítulo 16 - Habilitados

Finalmente fomos habilitados. Entranho isso, não é? Agora eu poderia ser mãe. Já verificaram minhas condições físicas, financeiras e psicológicas. Está tudo bem, então, eu poderia ser mãe.

Não sabia de demorariam de nos chamar. Quanto tempo demoraria para nosso processo andar? Queria tanto até o Natal já conhecer meu filhinho... ou filhinha!

E nem sinal da menina de Madre de Deus. Como será que ela está? Como será que Miguel está? Minha sensação é que vamos deixando pedacinhos de nosso coração pra cada criança que não nos tornamos pais.

Naqueles dias andei sentindo aquela coisa entranha. A saudade... saudade de meu filho! Como poderia ter saudade de quem eu ainda nem conheço? e porque insistia tanto de que teria um filho, não uma filha?

Visitar o quarto de nosso filho sempre me alegrava. O lugar estava uma graça. Nosso filho já havia ganho até alguns presentes! A casa estava sendo toda preparada pra ele. Eu estava até acordando mais cedo! Eu queria me habituar com as tantas atividades domésticas de uma mãe. Eu, mãe.

Capítulo 15 - Reunião em Família

Família é uma coisa interessante. São laços tão fortes, mas tão fortes, que chega a ser difícil imaginar que uma simples reunião pudesse ser transformada pela presença da minha família.

Até meu pai, sempre ocupado em audiências foi. Minhas irmãs sairam mais cedo do trabalho e minha mãe não foi dar aula de tarde. Tudo pra me acompanhar. Dos meus convidados, só minha tia não foi. Perdeu. Foi maravilhoso.

Havia umas 20 pessoas, contando com a piscicóloga e suas duas assistentes. Eu e minha família éramos seis pessoas. Sentamos afastados uns os outros. Dra Cíntia pediu para que um a um, todos se apresentassem e falassem de suas expectativas sobre a adoção.

Cada vez que um familiar começava a falar, todos riam. Era sempre assim: eu sou Dani, irmã de Bia...eu sou Sandra, irmã de Bia... eu sou Demetrio, pai de Bia... foi muito engraçado.

E o lindo de tudo foi ouvir as expectativcas deles, que não estão adotando, mas que estão sentindo as minhas “dores de parto”. Ouvir meu pai, minha mãe, minhas irmãs falarem o quanto esperavam por meu filhinho, me fez desejar ainda mais que ele chegasse logo.

Neles e em tantos outros que estavam ali pela primeira vez, os olhos brilhavam por saber de tantas novidades e histórias. Em mim, meus olhos brilhavam porque senti que meu filho vai ser muitíssimo amado.
Ao final na reunião nos despedimos e fomos para casa. Eu mal havia chegado quando minha sogra me ligou. A advogada (amiga, da amiga, da amiga) está na casa dela. Ela vai descer aqui. Parece que a menina ainda não foi adotada. Ela vai no interior amanhã pra uma audiência e vai aproveitar e vai ver se resolve este caso. Será?

Naquela noite minha família foi na minha casa para a mega-inauguração do quarto de meu filho. Comemos pasteis fritos e tivemos muito assunto para conversar!

Capítulo 14 - A Menina de Madre de Deus

Estávamos ansiosos. Nosso processo já havia saído do ministério público e agora estava na mesa do juiz, só aguardando a assinatura dele. Com este papel em mãos faltaria pouco para conseguirmos nosso filho.

A habilitação assinada pelo juiz na Comarca de Salvador valia para outras cidades. Pensamos em tirar muitas cópias, assim aumentaríamos as nossas chances.

As coisas voltaram a esquentar no escritório, com novos contratos, e mesmo tão entretidos no trabalho meu pensamento sempre estava em nosso filho. Quando, quando, quando, esta era a palavra.

Minha sogra me chamou e me entregou um cartão de uma advogada. Disse para entrarmos em contato com ela com urgência. Eu imaginei o que era. Deve ser uma das conhecidas da família empenhadas em nos conseguir um filho por meio de adoção consensual. Dito e certo.

Adoção consensual é aquela em que a mãe doa seu filho direto para você, ou seja, a criança não vai para o casal que está na frente da fila dos habilitados pelo juiz. Nem todos os juizes aceitam fazer isso. E existe o risco da mãe desistir no meio do processo. Depois do que aconteceu com Miguel não estava muito disposta a correr este risco.

Quem ligou foi Léo. Era uma menina. Havia nascido naquele dia. É claro que queríamos. Anotou um telefone. Era o telefone da amiga da avó da menina. A velha história da amiga, da amiga da amiga. Eu estava cética. Léo se animou.

Léo ligou para esta senhora. Ela disse que retornaria. E aguardamos. Enquanto isso a notícia se alastrou pela família.

Alguns dias depois, depois de muito me perguntarem sobre a menina, Léo voltou a ligar. Acho que a mãe desistiu, a amiga dela não tinha muitas informações. E foi assim que terminou esta história. Antes assim, sem emoção, do que terminar com meus olhos mais uma vez inchados com mais uma decepção.

Mas eu estava confiante de que em breve nosso filho em breve estaria emcasa. Logo, logo. Já havíamos comprado até móveis do quarto! E quando este dia chegasse, iria entrar na lista dos dias mais felizes da minha vida.

Capítulo 13 - Realizar um Sonho

Lá estávamos nós em mais uma reunião no juizado de menores. Esta era a nossa última reunião “obrigatória”. É claro que queríamos continuar indo, porque estas reuniões foram de uma ajuda fundamental para a formação dos meus conceitos sobre adoção, e para a queda de outras tantas idéias sem fundamento.

Naquele dia não houve uma palestrante contando seu testemunho. Foi a própria psicóloga quem preparou um texto bastante interessante para refletir conosco.

Neste texto de uma mestranda em psicologia chamada Weber abordamos diversos aspectos da adoção. Faixa etária dos adotantes, preferência nacional por meninas brancas e recém-nascidas, renda familiar média dos casais, e outros pontos. Mas naquela tarde, nem os comentários de minha querida Dra.Cíntia me chamaram tanto a atenção quanto as palavras de uma mulher que estava sentada bem na minha frente.

Em algum momento da conversa entramos no assunto “preparar o quartinho”. Várias mães se manifestaram sobre o assunto, mas aquela senhora foi além do que eu poderia imaginar. Ela já havia decorado o quarto todo de rosa, comprado brinquedos, bordado o nome... tudo! Eu fiquei impressionada, principalmente porque meu filho não tinha um cabide sequer.

Eu defendi as mulheres que não tinham comprado nada ainda, afinal, olhar para um quarto cheio de coisas, porém, mais vazio do que nunca, poderia aumentar o sofrimento e a ansiedade.

A discussão foi boa, mas eu custei a acreditar que ela realmente estivesse tão pronta. Na verdade eu não acreditava no quanto eu não estava pronta. Como é que não comprei sequer uma toalha? Um lençol? Será que havia algo de errado comigo?

Pelo menos o quartinho já estava pintado. Mas faltava tanta coisa que eu nem sabia o que era! Então fiz uma pesquisa na internet, procurei listas de chá de bebê. Mas meu filho poderia não ser um bebê... Ainda resta aquela dúvida muito maior...a cor do quarto. O quarto está pronto, pintado de branco, com uma das paredes pintada de azul-sem-querer.

Depois desta reunião me animei e resolvi comprar o máximo de itens para meu filho. Móveis, cabides, toalhas, tudo o que atendesse à uma criança de até dois anos, menino ou menina.


Capítulo 12 - Quando o Amor Não é Correspondido

Faz apenas dois dias que tivemos nossa primeira reunião a sós com Dra. Cíntia. Era a nossa segunda reunião em grupo. Embora eu gostasse das reuniões, estava contando nos dedos o número de reuniões obrigatórias para que a psicóloga passesse o processo para que o juiz liberasse a nossa habilitação. Nomezinho estranho para esta situação. Habilitação. Precisamos provar que somo capazes de ter um filho.

Eu já não estava tão ansiosa quanto fiquei na primeira reunião em grupo. Estava bem à vontade, pois reconheci alguns rostos e já conhecia a psicóloga e sua assistente Priscila.

Esta reunião foi diferente. Dra Cíntia disse que não traria desta vez um caso de sucesso. Traria sim, um caso de desistência.

Até a expressão foi diferente. Não que seja um caso de insucesso. Foi melhor a mãe ter decidido antes que passasse o período da guarda provisória.

Não nos contaram detalhes, mas entendermos uma coisa: houve uma completa incompatibilidade entre acriança e a mãe. Completa mesmo. A mulher que nos contou a história foi a própria mãe. Ou melhor, ex-mãe, se é que algo assim existe. Ela estava abatida, pálida, sofrendo claramente. Disse que se sentia incapaz, fraca. E nos deu o conselho mais importante que recebemos até agora: nas visitas, fique à sós com a criança.

Pode parecer uma bobagem, mas alguns funcionários despreparados tentam “adestrar” as crianças. Acreditem. Eles ensinam as crianças a te chamarem de mamãe quando vc entra na instituição e pressionam as crianças na hora das visitas para que se comportem como você deseja.

E nós, que chegamos fragilizadas e cheias de idéias românticas sobre as crianças, acreditamos que nosso filho é aquele, e é daquele jeitinho meigo que está mostrando. Mas quando você fica a sós com a criança, ela está livre pra mostrar se gostou de você. Não se sente pressionada a te escolher como mãe. Quando ela está a sós ela pode mostrar quem ela é, pra que você a ame do jeito que ela é.
Não quero que aconteça comigo. Chegar em casa e perceber que a criança foi obrigada a nos aceitar. Nem pensar. Eu posso me apaixonar pela criança, mas ela só vem comigo se estiver realmente com vontade de dar uma chance ao meu amor. Somente se ela me adotar como mãe.

Aquela tarde foi a que eu mais tirei lições sobre o processo de adoção. Me surpreendi com tantas possibilidades que podem acontecer no nosso caminho. Hoje mesmo abri mais uma possibilidade. Liguei para uma tia minha que mora no interior. Pedi a ela que fosse no juizado da cidade dela perguntar o que eu precisava fazer para adotar um filho.

Na verdade minha intenção no fundo era ouvir “menina, arranjo uma criança pra você hoje mesmo” – tentação. Mas lembrei de Miguel e fiz a coisa certa. Adoção, só pelo juizado.

Capítulo 11 - O Assalto

O alarme do carro estava quebrado. Léo acionava o vidro do carro quando eu ainda fechava a porta. No dia anterior eu já havia machucado um dedo – ele foi esmagado enquanto Léo fechava o carro. Doeu mesmo. Fez até calo de sangue. Agora, um dia depois, de novo. Foram dois dedos desta vez. Se eu não conhecesse meu marido, iria achar que ele estava fazendo de propósito.

Com os dois dedos machucados, fui para a consulta médica levar o resultado dos exames. Léo me deixou na frente do prédio e seguiu para o trabalho. Ele queria muito ir comigo, mas não poderia deixar este compromisso.

Meu médico era ótimo. Tinha um senso de humor que médico nenhum tinha. Ele examinou todos os resultados de exame. Levei uns exames antigos que eu tinha e ele analisou também. Então meu mundo caiu.

Dona Bia, está tudo bem. Sangue, urina, órgãos – ele fez um exame geral em mim, pediu todo tipo de teste - O único problema mesmo é seu ovário. Você dificilmente engravidará e, se conseguir, provavelmente vai perder o bebê. Mas podemos tentar aplicar alguns hormônios...eu não estava mais ouvindo.

Nunca nenhum médico me falou isso. Eu tenho 29 anos, já fiz pelo menos umas 40 consultas com ginecologistas. E como só agora eu fico sabendo que tenho dificuldades para engravidar? que eu posso sofrer um aborto? como nenhum médico me falou isso antes?

Tudo bem que desta vez eu estava falando com um especialista em infertilidade. Eu sabia que não estava completamente saudável, porque tentava engravidar há dois anos e não conseguia. Mas esta história de poucas chances, de aborto, não estava nos meus planos.

Minha vida, tão planejadinha... estudar, se formar, trabalhar, se casar, ter filhos... tudo tão planejado e eu, estéril. Estéril. Palavra estranha. Eu fui no médico para ouvir que era pisicológico, que eu deveria relaxar, mas não. Não era tão simples. Que dor. Meu Deus. O médico disse que após três meses usando um remédio, eu refaria alguns exames. Eu não pensava em mais nada. Só queria sair dali.

A adoção era uma escolha, uma opção. Queríamos um filho da barriga e um do coração. Agora não era mais uma opção, era a minha única forma de maternidade.

Ainda meio atordoada, segui para uma obra, aonde um cliente me esperava. Ainda de manhã, combinei com Léo que se encontrasse comigo lá, pois a obra era em um orfanato. Seria uma oportunidade de conhecer este ambiente, sem a pressão de estar indo visitar pretendentes a filhos.

No caminho, no carro, com um colega engenheiro, conversava tentando disfarçar a tristeza. Coloquei a mão na minha barriga, e senti uma dor tão forte no peito...

Chegamos à obra do orfanato. Nenhuma criança. Meu colega se enganou, era apenas uma casa de convivência. Na sexta de tarde as crianças voltam para suas casas, para a casa de suas famílias. Suas próprias famílias.

A casa de convivência ficava no bairro aonde distribuíamos sopa. A obra era o muro ao redor da propriedade, que era muito extensa e vinha tendo suas terras invadidas por casas da comunidade.

Primeiro olhamos as instalações por dentro. Léo chegou junto conosco. O local era bonito, bem cuidado, limpo. Vivia de doações. Nosso colega propôs que fôssemos por trás da instituição, para vermos o local já invadido pela comunidade, para analisarmos a situação do terreno.

Chegando lá, constatamos que parte do antigo muro ainda existia. Entrando mais um pouco, percebemos que a maioria do muro já estava no chão. Havia barracos de madeira ocupando o terreno do nosso cliente. Bem, nosso trabalho é construir, isso não inclui brigar com vizinhos.

Olhamos tudo de cima de uma laje e resolvemos ir embora. Nem havia me dado conta de que estávamos tão longe do carro, tão dentro daquela favela. Quando voltávamos, percebemos um movimento estranho. Um assalto. Relógio, celular. Meu colega queria reagir, meu marido impediu. Um revólver. Dois bandidos. Eles levaram o que queriam e nos mandaram embora. Fomos andando rápido para o carro quando meu colega resolveu voltar para tentar recuperar nossos aparelhos. Gritamos com ele, precisávamos sair rápido daquele lugar, o carro estava longe.

Chegamos ofegantes no carro. Nem sinal de nosso colega. Não sabíamos o que fazer. E se os bandidos atirassem nele? E se eles atirassem em nós? Homens estranho se aproximavam. Entramos no carro. Meu coração gelou. Nem sinal de meu colega.

O homens passaram direto, mas falavam no celular e não pararam muito longe de nós. Eles iam tomar o carro. Nos levar, talvez. De repente, vi meu colega de longe.Vinha correndo. Acho que desistiu da operação de resgate de celulares. Ele entrou no carro dele rápido, enquanto nós manobrávamos o nosso. Saímos em disparada até a delegacia mais próxima, aonde registramos uma queixa.

Que dia horrível. Os assaltantes levaram alguns bens materiais. Nos deram um susto, nos humilharam, nos ameaçaram. Mas nem aqueles assaltantes me deixaram tão tristes quanto meu médico. Nem meus dedos espremidos na porta do carro doeram tanto. Eu, seca, estéril.

Capítulo 10 - Adotar Dói

Colocamos o carro no mesmo lugar que colocamos da última vez que estivemos no juizado, há uns 10 dias atrás. Passamos pela lanchonete da fachada bonita e pensei "hoje eu posso pagar pelos seus lanches". Eu nem estava com fome. Chegamos dez minutos mais cedo na nossa primeira consulta a “sós” com a pisicóloga do juizado, uma moça bonita, jovem, com um sorriso acolhedor.

O expediente parecia estar meio agitado naquele dia. O telefone tocava sem parar, a secretária da psicóloga faltou. Mas nós estávamos bem.

Quando entramos na sala da Dra.Cíntia, ela logo começou com a seção de perguntas, como em todas as entrevistas do juizado: porque vocês querem adotar? vocês são favoráveis à adoção de crianças de outras raças? qual o sexo da criança?

Enquanto nos explicava a importância de ser aberto a adoção de crianças negras, Dra.Cíntia foi pegando umas folhas em branco, uns lápis e borrachas. Desenhem uma casa - ela disse.

Ela não sabia que erámos engenheiros, e não sabe da nossa dificuldade em obedecer a uma ordem tão simples quanto "desenhe uma casa". Ela queria uma casa em planta, em vista frontal ou em perspectiva? era uma casa existente ou um projeto? poderia ser a nossa casa? era com móveis ou sem móveis?

Ela riu das nossas dúvidas e disse que ficássemos a vontade, que fizéssemos o que estava na nossa mente. E fizemos. Sem olharmos um para o desenho do outro, desenhamos a mesma coisa: a nossa casa. Não sei se pelo fato de termos trabalhado tanto nela no final de semana, pintando tudo, ou se foi porque não havia outra casa na qual pensarmos.

Este final de semana foi um feriadão : sexta, sábado e domingo. Desde a sexta nós compramos tinta e massa corrida, e contratamos um servente para nos ajudar. Pintamos a sala (recém criada), a cozinha, o hall dos quartos, o corredor de entrada e o mais importante: o quarto o nosso filho.

O quarto do filho foi pintado todo de branco. Resolvemos que uma das paredes seria pintada de uma cor diferente, mas neutra, que combinasse com menino ou com menina. Compramos um pigmento e resolvermos criar a cor. Misturamos, misturamos, misturamos e chegamos a um verdinho lindo. Aplicamos na parede. Depois que secou, uma surpresa. O verde era um azul. Tudo bem, dá pra colocar uns enfeites femininos numa parede azul. Difícil mesmo é colocar enfeites masculinos num quarto rosa.


Quando entregamos os desenho a Cíntia, ela pediu mais duas novas obras de arte. Uma pessoa e uma árvore. E lá fomos nós. Eu gostava de desenhar árvores. Quando eu era adolescente fiz um curso de desenhos no qual uma unidade inteirinha foi dedicada ao desenho de árvores. Desenhar figura humana era sempre mais difícil. Quando eu e Léo olhamos para nossos desenhos a reação foi imediata. Caímos na gargalhada. Meus Deus, meu marido não é bom em desenho. A figura humana que ele desenhou parecia um palhaço num filme de terror. E eu preocupada com meu desenho.

Eu tenho certeza de que a pisicóloga não se importa se as pessoas sabem desenhar ou não. Mas mesmo assim, acredito que todo mundo capriche nos desenhos. Mas aquele desenho de Léo era horripilante demais.

Era a terceira vez que ela saia da sala. O telefone não parava de tocar. Devo confessar que aquilo me incomodou um pouco. Mas parecia ser algum tipo de emergência, pois era o juiz que estava ligando para ela. Tudo bem. O que poderíamos fazer. Durante as ausências dela comparávamos e ríamos de nossos desenhos. Nessa última saída ela pediu que fizéssemos um último desenho - uma família.

Engraçado, eu e Léo desenhamos uma família com dois filhos, um pai e uma mãe. Juro que não combinamos. Os filhos que ele desenhou já eram grandes. Os filhos que eu desenhei eram menores, e um deles era um bebê. A família que Léo desenhou foi mais bonitinha que o desenho da pessoa sozinha que ele desenhou na outra folha. A pisicóloga de repente entrou na sala e disse que não poderia mais nos atender, pois precisava resolver um problema com urgência e remarcou nossa consulta.

Fomos pra casa e eu estava um pouco triste. Pode parecer infatilidade, mas estava chateada porque não recebemos atenção. Aquele telefone toda hora tocava. Que chato. A tristeza começou a se intensificar e, como toda pessoa que tem problemas de auto-estima, comecei a me culpar por não conseguir engravidar. Se eu ficasse grávida não precisaria ficar dependendo de juiz, de assistente social, de pisicóloga, de nada disso. Eu simplesmente ficaria grávida e começaria a arrumar o quartinho de meu filho. Seria tudo muito alegre, muito feliz, sem este tipo de situação em que fico às vezes muito alegre, às vezes muito triste. Adotar dói.

Eu acredito que Deus tem um propósito nisso tudo. Porque eu precisaria passar por todas estas situações? deveria existir uma razão. E eu esperava não demorar a descobrir.

Capítulo 9 - A Assistente Social na Minha Casa

Aquele dia foi muito marcante. A primeira reunião da qual participamos foi ótima, muito motivante e edificante. Agora, precisávamos receber a assistente social em nossa casa.

Estávamos exaustos mas a famosa rachadura não poderia ficar à mostra. É claro que ela desapareceria quando pintássemos a casa, o que estava planejado para ocorre em 30 dias, mas mesmo assim poderia não ficar bem no relatório "casa de engenheiro, rachadura que vai de uma ponta a outra da parede".

A bendita rachadura não oferecia perigo, mas era muito feia, é verdade. Então, para não assustar a asistente social, que iria avaliar nosso imóvel pra ver se tinhamos condição ter uma criança ali dentro, resolvemos não arriscar. Compramos gesso e massa corrida. Começamos a trabalhar por volta das 22:00. às 23:30 estava tudo pronto.

Acordamos 06:30. Que ótimo, o céu estava limpo, um azul lindo. A assistente ficou de chegar a partir das 08:30. Lavamos uns copos, tiramos o lixinho do banheiro, Léo lavou o carro e pronto. A casa estava ótima.

Nove horas. Nada. Nove e meia. Nada. às 10:10 a AS chegou. Umas nuvens escuras se juntaram no céu. O carro do juizado parado lá na porta não ficava bem mas, os vizinhos vão entender depois. A assistente era muito simpática. Rapidinha, assim que se apresentou começou logo a anotar o que via. E disparou a fazer perguntas.

"Eu trabalho aqui", me adiantei a explicar o óbvio, meu escritório na frente da casa, com uma entrada independente. Ela anotou. Perguntou o que meu marido fazia. Léo estava no escritório e resolveu ficar por lá. Achou melhor que eu mostrasse a casa. Ela deve ter perguntado porque achou estranho um marido, em plena quarta-feira, às 10:00 da manhã, em casa. Ela precisa mudar seus conceitos - pensei. Léo era matemático e dava aulas à noite, numa escola num bairro distante. De tarde ele estudava engenharia na faculdade pública e de manhã trabalha comigo. Ele é um super-marido, mas ela não sabia disso.

No final de semana anterior nós havíamos comprado os sonhados moveis da sala. Mas a tão precisada pintura, que daria vida à tudo, ainda não havia começado.

Ela perguntou aonde era o quarto do nosso filho. Levei ela lá. O quarto era pequeno, mas dava para uma criança sobreviver, pois era bem arejado, e dava uma cama, um guarda-roupa e uma cômoda. Minha experiência de vida mostrava que dava umas três crianças ali, pois minha mãe conseguiu criar 5 meninas num quarto parecido. Mas Léo, que cresceu tendo o próprio quarto desde pequeno, não acreditava muito em mim quando eu falava sobre o potencial daquele quarto.

Eu e minhas quatro irmãs só tivemos mais espaço quando eu já tinha uns 16 anos. Eu sabia exatamente o que era dividir prateleira por prateleira de um guarda-roupa. E eu gostava de dormimos tão juntas. À noite, eu demorava a dormir, e sempre tinha alguém pra tentar me esperar pegar no sono.

A assistente foi no nosso quarto. A operação foi um sucesso. Ela nem notou a marca da massa corrida recém-colocada. Mais anotações, mais perguntas e ela disse que iria embora.

Quando a assistente social se foi, fiquei preocupada. No ritmo que as coisas iam, a casa precisava ficar pronta rápido. Em poucos dias teríamos a reunião com a psicóloga e seríamos habilitados. Não tínhamos dinheiro para deixar a casa perfeita, mas pelo menos nosso filho teria uma casinha pintada e aconchegante para morar. Eu queria que ele se sentisse bem, acolhido e feliz.

Capítulo 8 - O Maravilhoso Juizado de Menores

O dia estava lindo demais. OCéu azul radiante, uma temperatura muito agradável. Eu só pensava na reunião, é claro. Estava curiosa pra saber o que acontece numa reunião de pais, no juizado de menores.

A pisicóloga do nosso juizado, a Dra.Cíntia, fazia este tipo de reunião entre quem já adotou e quem estava querendo adotar. A idéia parecia brilhante mesmo.

A ansiedade que já não estava pouca, aumentou depois que recebi um telefone do juizado; “a assistente social visitará a sua casa amanhã de tarde”. Pronto, a rachadura. Acreditem, nós engenheiros, morávamos numa casa onde havia uma linda rachadura em nosso quarto, que fizemos questão de ignorar todos estes anos, porque sabíamos exatamente qual o motivo dela existir. Mas a assistente social não sabia, e não iria entender, com certeza. Mas poderíamos dar um jeitinho nela rapidamente, com massa corrida, à noite, depois da reunião com a psicóloga.

O nervoso era tanto que nós não almoçamos. Quando chegamos ao prédio de estacionamento próximo ao juizado, vimos uma lanchonete com salgados maravilhosos e resolvemos lanchar. Só havia um problema. Léo esqueceu de passar no banco e sacar dinheiro. Contamos moedinha por moedinha que havia nos bolsos e não pagava o lanche que queríamos.

Quando nosso filho chegar isso não pode acontecer” – foi o que passou na cabeça dos dois. A nossa salvação foi uma barraquinha do lado de fora do prédio, que vendia alguns lanchinhos, não tão bonitos, mas muito saborosos também. Separamos então as moedas que pagariam o estacionamento – dava para pagarmos por 4 horas. E fizemos o lanche. Faltam apenas dez minutos para a reunião, falei pra Léo, que ainda saboreava o delicioso cheeseggburger. Que tal um brigadeiro antes de irmos? Léo perguntou. Bem, um brigadeiro custa uma hora do estacionamento - pensei. Não acreditava que a reunião iria demorar tanto, afinal, o juizado deveria fechar às 18:00 horas, no máximo.

Fomos para a reunião comendo o brigadeiro. Chegando lá, a sala estava cheia, mas ainda havia dois lugares. Os nossos, é claro. As cadeiras estavam dispostas em círculo, e havia uma cadeira numa posição aonde todos poderiam ver quem fosse falar ao grupo. Ninguém estava sentado lá ainda.

Havia quatro casais heterosexuais, três solteiras, duas amigas, e um casal homossexual feminino. O casal mais próximo da cadeira principal foi o casal que eu conheci na nossa primeira visita ao juizado. O casal que estava bem na nossa frente parecia ter a mesma faixa etária que eu e Léo. E os olhos deles brilhavam. As duas solteiras liam livros. Todos os outros estavam imóveis, como se estivessem brincando de estátua. Inclusive nós dois.

A reunião começou às 16:30, com a pisicóloga pedindo desculpas pelo atraso e explicando o que faríamos ali. Nós escutaríamos a história de uma das solteiras, que adotou sozinha um menino de 4 anos.

Eu achava que já havia visto aquela solteira. Acho que a vi no shopping inaugurado recentemente. Lembro que ela estava com um menino segurando a sua mão. Me lembro dela porque me lembro da minha reação ao ver os dois. Ela, branca, loira. Ele, negro. Quando os vi, era como se eu estivesse me vendo em poucos dias, porque nós iríamos adotar uma criança negra, e provavelmente seria um menino. Lembro que olhei pra ela, depois pra ele, depois pra ela de novo. Reação boba, mas natural.

O que se passou a partir daí foi uma aula de amor. A história que ouvi naquele dia marcou, não só a mim, mas a todos que estavam naquela sala.

Ela não ouviu sininhos tocarem, como aconteceu comigo e Miguel, quando olhou a criança pela primeira vez. Disse que foi um processo de conhecimento até que ela tivesse certeza de que era o filho dela. Será que é isso que vai acontecer comigo? Ou será que vou olhar e sentir? Mil coisas se passaram em minha mente, sobre este momento que considero o mais importante no processo.

Ela falou muito sobre as primeiras reações do menino, sobre o primeiro choro, a primeira birra. O medo dele de ser levado de volta ao orfanato. Cíntia, a piscicóloga falou que ele ainda precisava ouvir muito mais as expressões “esta é sua casa”, “este é seu quarto”, “eu sou sua mãe”, pois ele estava precisando de auto-afirmação. Era preciso conduzir muiti bem as coisas, com muito carinho e paciência.

A reunião acabou às 17:30. Precisávamos correr, pois nosso “tempo de estacionamento” havia se esgotado. Foi uma pena, porque eu gostaria ter ficado conversando com aquelas pessoas.

Percebi, naquela tarde, que eu agora pertencia ao mundo de pessoas diferentes. Não ao mundo aonde as pessoas acham lindo o fato de adotarmos, ou que acham que estamos assumindo problemas dos outros. Nós agora pertencemos ao mundo dos que tornam o desejo real, dos que vivem na prática o adotar, com o bonito e o feio que ele trás. E eu amo fazer parte deste mundo.

Capítulo 7 - Uma Casa

Com o processo no juizado sendo iniciado, nós sabíamos que mais cedo ou mais tarde iríamos receber a visita da assistente social. Nós decidimos que precisávamos de uma sala. O que a assistente social iria pensar de uma casa que não tem sala? Temos 02 quartos, 01 cozinha, 01 área de serviço, três sanitários, uma garagem grande, 01 escritório... mas não havia uma sala de estar.

Há 2 anos, quando resolvemos montar meu escritório em casa, refletimos sobre todos os impactos que isso poderia ter. Na minha profissão isso é até comum. Conheço muitos arquitetos ou engenheiros projetistas que trabalham em casa, num escritório que fizeram para atender seus clientes.

A nossa casa tinha uma sala grande que dava um ótimo escritório. Fiz um projeto aonde saparei a sala/escritório do restante da casa, com entradas independentes, para preservar minha privacidade e manter a o cliente num local profissinal.

Fizemos a reforma da separação e criamos um lavabo muito bonito. O escritório ficou ótimo, espaçoso, o lavabo ficou moderno com pastilhas de vidro de cor azul no chão. Os móveis, cor de tabaco com branco e as paredes brancas deixaram o ambiente moderno. Mas a reforma do escritório levou toda a nossa reserva de dinheiro. Não sobrou capital para fazermos uma nova sala e mobília-la.

Analisando a planta daminha casa encontrei uma solução econômica e rápida para meu problema. Fiz um projeto para fazer a nossa sala aonde era a nossa copa, então, a cozinha seria do tipo americana, com um balcão de granito separando a sala. Só faltavam os móveis.

Visitamos uma loja de móveis muito bonita. Era uma das mais caras da minha cidade. Resolvemos parar nela por insistência de Léo: não custa nada dar uma olhada. Entramos. A loja era enorme. Quatro andares com centenas de ambientes, cada um mais lindo que o outro. A cada andar em me encantava mais com os móveis, mas me assustava mais com o preço.

Os móveis das primeiras seções pareciam móveis de castelos. Madeira maciça, muito trabalhada, com estofados florais. Lindo, caro, e não combinava com minha casa. Queria algo num estilo mais moderno, móveis brancos, sofá com design, estas coisas. Quando chegamos no terceiro andar havia uma seção que fazia mais nosso gosto. Cada coisa linda. Tudo combinava com que eu queria. O preço era o problema.

Visitamos a loja inteira e quando estávamos descendo pra irmos embora, resolvemos chamar o vendedor e fazer um orçamento. Ele disse que a loja estava em promoção e fez um preço tão bom, que eu nem acreditei. Compramos os móveis. Eu não acreditei. Meu sofá, meu rack e minha mesa de centro. Tudo lindo. Eu não acreditava. E o preço foi quase o mesmo de uma dessas lojas populares aonde passamos o dia anterior fazendo orçamento.

Tendo os móveis da sala, faltava pouco. Falta os móveis do quarto do nosso filho, que só iríamos comprar quando soubéssemos quem ele (ou ela) era.

Saindo da loja nos dirigimos aos juizado. Quando chegamos lá para levarmos os documentos eu estava muito nervosa. Será que faltava algo na documentação? Acho que não, eu repassei a lista várias vezes. Léo parecia tão ansioso quanto eu.

Quando ainda estávamos em casa e nos vestíamos para irmos ao juizado, aconteceu uma coisa engraçada. Vesti uma roupa e depois troquei Depois troquei de novo. De novo. Queria uma roupa que me deixasse menos tensa. Eu me arrumei antes de Léo. Quando ele acabou o banho e foi se vestir, escolheu uma roupa. Vestiu. Depois tirou e colocou outra. Depois, me pediu para eu escolher uma outra camisa, porque ele achava que não estava bom. A ansiedade nos faz passar por cada situação...

Logo que entramos na recepção do juizado, chagou um comissário com uma mulher e duas crianças. Elas pareciam que não se alimentavam há dias. A mãe, falava alto, protestando por ter sido levada ao juizado. Magros, pálidos e cheirando a xixi. A mãe foi denunciada por maus tratos.

Eu fiquei pensando na cena e imaginando o que leva uma mãe a descuidar daquela formas dos seus filhos. Será que ela é normal? Será que ela está passando dificuldades? Será que ela os ama?

Uma vez conversando com meu grande amigo Fernando, que tem uma filha adotiva, sobre o que leva uma mãe a dar um filho, ele me disse: é amor. Eu nunca havia pensado desta forma. Só o amor faz uma mãe abrir mão de seu filho para que outra cuide melhor.

A assistente nos chamou. Era uma mulher bonita, loira, magra, deveria ter uns 45 anos. Falava suavemente conosco, e torceu a boca quando ouviu a mãe das crianças raquíticas que estavam na recepção falar em alta voz que alimentava as crianças sete vezes por dia.

Primeiro, ela verificou a documentação. Tudo certo. Depois, as perguntas. Perguntas sem fim. Porque vocês resolveram adotar? Qual o seu problema de saúde? Seus familiares concordam? Vocês moram sozinhos? Existe alguém adotado na família?

E assim foram 40 minutos de conversa. Fomos questionados sobre qual horário poderíamos receber a assistente social em casa. No final, a assistente nos levou para marcarmos um horário com a piscicóloga. A atendente da piscicóloga nos informou que, antes da entrevista individual, passaríamos por uma reunião de pais. Imagine! Eu e Léo numa reunião de pais! Achei a idéia maravilhosa.

Capítulo 6 - Tentando Engravidar, da Barriga e do Coração

Percebemos que o caminho não era tão fácil como imaginávamos, mas pela primeira vez entendi a burocracia como algo importante. No caso da adoção ela age como uma peneira, para ver quem consegue ir até o fim.

Na verdade não deu tanto trabalho assim. Nós estávamos tão ansiosos que em uma semana arrumamos tudo o que foi exigido. É claro que ficamos horas em cartórios, aguardamos mais de três dias pela autenticação de uma das certidões e fizemos dois amigos perderem um turno de trabalho indo reconhecer firma de uma declaração de idoneidade moral.

Coincidiu que no dia da consulta ao médico especialista em esterilidade só faltava um único documento. Chegamos na hora marcada à consulta. Dr.Luís era, além de ginecologista, obstetra. Muito atencioso e procurando tornar o ambiente menos tenso, ele procurou nos deixar à vontade.

Eu imaginei que fosse ver fotos de dezenas de bebês nas paredes, como fazem os obstetras. Dois anos antes, quando eu ia com minha irmã grávida ao consultório do seu médico, achava linda a decoração feita de bebês que ele ajudou a trazer ao mundo.

Mas meu médico não tinha uma foto sequer. Ele tinha uma porção de bibelôs em uma estante. Eu imaginei que fosse uma por cada bebê que ele ajudou a nascer. Assim me senti mais confortável.

Perguntas e mais perguntas. Eu gosto das perguntas. Eu quero que ele me ajude a entender o motivo de eu não engravidar. Exames e mais exames. Só saberemos depois dos exames. O médico me fez tantas perguntas quanto a assistente social.

Tudo estava caminhando rápido. Ao mesmo tempo em que organizava os papeis exigidos para a adoção, estava fazendo os exames médicos para descobrir o porquê de eu não engravidar.

Olhei a guia que solicitava o exame de gravidez. Coitado. Só ele achava que eu estava grávida. Meu ciclo, muito irregular, me fez pensar uma centena de vezes: “agora estou”. Estava nada. Só mais um alarme falso. Mas fui fazer os exames assim mesmo.

No dia seguinte coletei o sangue num laboratório da APAE, que é uma associação que atende crianças mais que especiais, as que têm Síndrome de Down. O tempo que fiquei aguardando para ser atendida fiquei refletindo sobre estas crianças, e sobre a minha falta de altruísmo. Na duas únicas restrições sobre o tipo de criança a ser adotada, escolhi uma criança “saudável” e menor que dois anos.

Eu admiro os casais que adotam bebês com problemas de saúde, e sei que é muito delicado tratar deste assunto, mas eu não poderia simplesmente não pensar nele. Quem engravida sabe que o filho pode nascer com Síndrome de Down ou com outra doença congênita. Quem adota, sabe que existem centenas de crianças precisando de uma mãe.

Eu e meu marido pensamos muito sobre como seria o perfil criança que iríamos adotar. Acho que todo casal sonha em ter seu bebê, com sua carinha, nariz da mãe, olhos do pai, estas coisas. Na adoção, como isso não é possível, é comum desejarmos uma criança parecida. Cor da pele parecida, cabelo parecido, olhos parecidos.

Nas primeiras conversas sobre adoção, aliás, nós queriamos uma criança assim: olhos castanhos claros, pele clara, cabelos castanhos, com 8 meses de nascido. Eu achava que, se eu parisse, meu filho seria assim. Com o amadurecimento da idéia, depois da nossa história com Miguel, e com o conhecimento sobre o processo de adoção e das dificuldades das crianças que aguardam por uma mãe, mudamos muito nossos conceitos.

Sobre a cor da pele, imaginamos que, se recebêssemos um bebê loiro, de olhos azuis, ele poderia sofrer muito na escola. Como explicaríamos aqueles olhos e aqueles cabelos? Me preocupava dele ser rejeitado na escola, quando descobrissem o motivo de seus pais serem tão diferentes dele. Eu achava que ele iria sofrer. Na verdade, eu estava mascarando o meu sofrimento. Demorei a entender que a criança não está ali para me satisfazer e acabar com minhas frustrações.

Isso tudo é feio, mas se passou na minha cabeça. Hoje, enxergo que vou precisar educar meu filho, e amá-lo de forma que, quando for questionado, ele afirme que sim, que é adotivo, confiante, sem se sentir inferiorizado. Percebo que na verdade era a minha auto-estma que não me dava confiança do que eu estava fazendo. Não poderia passar esta insegurança para nosso filho. Então, resolvemos esquecer esta história de cor, e aceitar o presentinho que Deus estaria nos reservando, colorido como fosse.

Capítulo 5 - O Temido Juizado de Menores

O dia estava ensolarado. Um sábado digno de ir para a praia. Acordamos cedo, fomos para o escritório trabalhar em alguns projetos, quando eu acessei o site do jornal local. Vi na página principal que o juizado de menores estava dando informações sobre adoção num lugar ali perto.

Léo, que tal irmos lá perguntar o que fazer? – se Maomé não vai até a montanha... ele respondeu positivamente e fomos.
Eu estava ansiosa. Avistamos o balcão e um comissário nos atendeu. Explicou quais as exigências. Nós atendíamos a todas. Nos deu um número para ligarmos e fazermos um pré-cadastro, pois a assistente social ligaria de volta. Pegamos o número e seguimos com nosso roteiro de visitas às obras.

O dia com céu azul limpíssimo parecia um presságio de boas notícias. E aquele número de telefone também.

Liguei. Atenderam. A atendente foi muito atenciosa. Dei meus dados - filho, ela está perguntando sobre as restrições de idade, sexo e cor... - comentei com Léo, que dirigia mais atento à minha ligação do que ao trânsito. Fala que não temos restrição alguma, somente `idade, que deve ser até 2 anos... – Léo falou com tanta convicção que me deixou ainda mais animada. A conversa terminou com a promessa de um retorno: a assistente vai entrar em contato com você esta semana ainda – a atendente disse.

No caminho inteiro não tivemos outro assunto. Precisamos fazer uma poupança para nosso filho. Precisamos pintar a casa. Precisamos organizar nosso horário com os clientes. Precisamos mesmo é de um filho.

Uma das obras que visitamos era uma casa linda na beira da praia. No lado de fora, sentindo o cheiro do mar, lembrei que a assitente social me ligaria naquela semana. Em breve eu seria mãe. Como vou deixar meu filho e visitar meus clientes aos sábados? – pensei, me desligando completamente do trabalho.

Ela vai ligar e vai dar tudo certo. Este era o meu pensamento. Mas ela não ligou. Ninguém ligou.

Todos os dias Léo me perguntava se eu havia recebido a ligação. A resposta era sempre a mesma: não. Cansada de aguardar e decidida a tomar uma atitude, marquei minha ida ao Juizado.

Na sexta-feira de tarde estávamos os dois lá. Nunca havia estado num juizado de menores. Um prédio público normal, se não fosse pela minha tensão. O elevador estava quebrado. Subimos três andares de escada, mas estava felicíssima e subiria até o décimo andar se fosse o caso.

Eu sentia uma coisa tão estranha. Uma alegria, uma incerteza, um medo, uma vergonha. Um coquetel de sentimentos. Entramos na sala da inscrição. Havia, além da atendente, uma mulher lá.

Boa tarde. Boa tarde. Silêncio. A senhora também vai adotar? Vou, e você? Demora muito? depende. E a conversa foi se alongando. A assistente social estava atendendo outra pessoa. Aquela senhora tentou por 10 anos engravidar. Resolveram adotar e já estavam mais adiantados no processo, pois já iriam fazer a entrevista com a psicóloga. Eu ainda estava começando. A senhora pode se dirigir àquela sala, por favor. Agora era a nossa vez.

Paloma. Este era o nome dela. Pele morena, olhos castanhos, muito alertas. Muito simpática. Ela começou fazendo uma perguntinha: no que posso ajudar vocês?. Que pergunta! Eu quero um filho!

Foram 35 minutos de conversa. Ela nos falou quais eram os requisitos: ser maior de 18 anos, comprovar renda, ser 16 anos mais velho que o adotado, dentre outras coisas. Dentre muitas outras coisas. No total foram exigidas 4 tipos de certidões, 2 comprovantes, várias cópias autenticadas, declarações e uma procuração.

Ela nos explicou todo o processo. Só não conseguiu explicar o motivo de não terem retornado a ligação. Em momento algum me desanimei diante do que foi exigido. Estávamos dispostos a ir até o fim com aquilo. Saímos do juizado com uma esperança tão grande, um desejo tão forte! muito mais forte que a burocracia.

O processo da adoção é praticamente uma gestação. O desejo vai crescendo dentro de você, vencendo as barreiras, se articulando para o grande dia. É uma gravidez da alma, do coração.

Capítulo 4 - Mãe para sempre

O episódio com Miguel me fez entender o que é a adoção. Eu achava que na adoção o amor viria com o tempo. Que, com a convivência diária, começaríamos a sentir amor pelo bebê. O que eu percebi, foi que, no mesmo momento em que Miguel foi meu, eu fui dele. Ele se apoderou de meus sentimentos.

No outro dia, eu senti tanta saudade, como se Miguel tivesse nascido de mim. Que dor. Que tristeza. Fiquei tão amarga, tão triste, que não me reconhecia. De noite, conversando com Léo, tive outra crise de choro. Léo também chorou. Chorou como um pai. Foi aí que percebi que eu precisava lutar. Não podia achar que estava acabado. Precisava lutar. Precisava ser forte. E desta vez, nada de atalhos, com amigos de amigos. Precisávamos ir ao fórum nos habilitar para a adoção. E precisava finalmente procurar um médico.

Até aquele dia eu ainda não havia procurado um médico para saber o motivo de eu não engravidar. Na verdade, nem eu mesma sei o porquê de não ter procurado fazer um tratamento. Mas no fundo eu sabia que não conseguia gerar biologicamente.

Depois do que sofremos com Miguel, aprendi que a adoção é um amor incondicional. E decidi que eu teria um filho, e ninguém tiraria ele de mim nunca mais.

Capítulo 3 - Mãe por duas horas

Era o dia dos pais, e precisávamos almoçar com nossos respectivos pais. Eu fui com meus familiares a um maravilhoso restaurante especialista em entupir artérias do coração, de comida muito saborosa. Meu pai gostou de seu presente, uma camisa social azul. Depois era a vez de meu sogro. Encontrei meu marido na casa de seus pais e quando ví a mesa posta percebi o quanto esta maratona de almoço em família no dia dos pais engorda!

Aquela seria uma boa oportunidade de colocar os assuntos em dia. A comida estava muito saborosa, como sempre, mas os comentários sobre a paternidade, ou falta de paternidade de Léo não foram fáceis de engolir. Se você quiser, te dou a receita, ou está precisando de ajuda? Tome um caldo de ovo de codorna! foram os favoritos da tarde. Talvez exista um livro sobre “piadas para fazer com casais sem filhos”.

É claro que o assunto da adoção iria surgir. Meu cunhado foi quem trouxe o assunto: e aí, Bia? Quando você vai visitar o orfanto? ele não sabia que, para chegar no estágio de visitas a orfato, haveria um longo caminho. Na verdade, naquele momento nem eu ainda sabia.

Um primo de meu marido, muito atencioso com nossa situação, disse que tinha uma amiga que ajudava financeiramente alguns orfanatos, e conhecia a diretora de um deles. A história do “conheço alguém, que conhece alguém, que conhece alguém”. Animados, ligamos para esta amiga dele. Chegou esta semana no orfanato um bebê, lindo, com 3 meses. Se você quiser, falo com a diretora do orfanato pra você ficar com ele. Você quer o bebê?. Você quer o bebê? – pensei comigo. Se eu quero? É o que eu mais quero hoje.

Ela me informou de que o coral do orfanato estaria se apresentando numa igreja naquela noite. O bebê não estaria, mas seria uma oportunidade de conversar com a diretora e ver se ela poderia me ajudar de alguma forma.

É bem verdade que o único motivo que me levou àquela igreja foi a possibilidade de encontrar meu filho. Eu imaginava que, talvez, no meio daquelas crianças que estariam se apresentando no coral do orfanato estivesse a minha criança. Não precisava ser o bebê. Então fomos. Eu e Léo nos arrumamos, e convidamos minha amiga Carlota para ir junto. Ela topou, e estava com a mesma expectativa que eu.

Vou ter um bebê – eu pensava no caminho. Finalmente. Se a diretora gostar e mim, ela vai me deixar leva-lo. Inocente. Eu desconhecia completamente o processo da adoção. Eu achava que era só gostar da criança e pronto. Algum juiz liberava a guarda pra mim, e seríamos felizes para sempre. Eu estava profundamente enganada. E a amiga do primo de meu marido também.

O culto já havia começado quando começamos. A arrumação da igreja era diferente. As pessoas se sentavam de frente uma para a outra. Logo que chegamos avistei o coral de crianças. Todas lindas, bem cuidadas. As meninas com vestido rosa e os meninos de calça azul e blusa branca. Eles pareciam felizes,animados e cantavam durante o culto.

Eu me sentia uma invasora. Só estava ali pelo interesse em conversar com a diretora. Quando olhei para o último banco do grupo que estava à nossa frente, vi a amiga do primo de Léo, de longe. Ela estava com o bebê no colo.

Miguel era lindo. Um lutador. Nasceu prematuro aos 5 meses e sobreviveu. Era forte, bochechudo, e olhava no fundo dos nossos olhos. Ela se levantou e veio em nossa direção. Colocou o bebê no meu colo. Ela era meu. Só poderia ser. Porque ela faria isso? Era meu! Eu e minha amiga começamos a chorar. Eu estava tão feliz. Cheirei a mãozinha tão pequena dele, beijei. E ele olhava fixamente pra mim. Meu marido, sentado no banco de traz, chorava também. Foi uma cena linda. Meu bebezinho, nos meus braços. Tão quietinho. Tão fofinho. E assim foram duas horas culto. Não me lembro de uma só palavra falada. Mas me lembro, até hoje, de cada traço do rosto de Miguel e do cheiro dele.

No final do culto, fomos, com Miguel nos braços, falar com a diretora do orfanato. Não percebi interesse nos olhos dela. Isso me incomodou. Será que ela não estava feliz por nos dar Miguel? Nós seríamos ótimos pais! Ela não precisaria se preocupar.

Antes de falarmos com ela, umas mocinhas me perguntaram: é você que vai ser a mãe de Miguel? sim, sou eu - respondi eufórica.

Oi, tudo bem? Eu sou Bia, e quero saber quais documentos preciso apresentar para adotar Miguel? – perguntei, já certa da adoção. Adotar Miguel? – essa pergunta foi fatal. Existem quatro casais que querem adotar Miguel. Ele já está praticamente adotado, acho que o juiz já tem um casal – o chão sumiu. Meu sangue também. Mas, mas... – eu nem acabei de falar e ela deu as costas, para ser parabenizada por alguém, pelo maravilhoso coral.

E eu,com Miguel nos braços, olhava pra minha amiga, tão pálida quanto eu. Carlota foi tentar interceder por mim para a diretora, mas Léo impediu. Ele já havia entendido. Eu também entendi, mas não tive forças para reagir. Carlota queria brigar por nós.

Senti uma coisa entranha. Uma dor que eu desconhecia. Fui até a diretora, entreguei o menino e disse: Adeus Miguel. Queira ter dito: “mamãe vai te buscar amanhã”, mas não podia falar isso. Disse apenas adeus, engolindo o choro.

Do lado de fora da igreja, não pude mais me controlar. Chorei, chorei como se fosse possível chorar por todo o corpo. Sentia uma dor horrível, uma dor como quem perde um filho. Fui pra casa e adormeci chorando.

Capítulo 2 - A Visita

Enquanto estávamos nos carro, a caminho da casa deles, chorei disfarçadamente. Léo não poderia ver. Ele não sabia ainda o quanto doía. E quanto mais eu passava as folhas daquela revista, mais sentia uma profunda tristeza. Lilás com rosa foi o quarto mais bonito. Mas se fosse menino, com certeza eu faria aquele quarto da página 32, com desenhos de peixinhos. Se fosse menino. Se eu conseguisse ter um filho.

Léo continuava a dirigir, ouvindo um dos nossos cantores favoritos. O cd já estava no carro há mais de 20 dias tocando as mesmas músicas. O sinal fechou. Pensei em falar alguma coisa, contar o que eu estava sentindo, mas não consegui. Se eu falasse certamente choraria. Meu marido sofre quando eu sofro. As coisas precisavam ficar bem, pois precisávamos decidir.

Qual o limite de idade? – perguntei, ansiosa para que ele começasse a falar e dissipasse um pouco a nuvem de tristeza que pairava sobre meus olhos. Essa foi uma das milhares de vezes em que nos perguntamos sobre a idade que iríamos estabelecer para nosso filho adotivo. Acho que no máximo 2 anos – Léo respondeu, ficando em silêncio logo depois.

Léo é uma pessoa boa pra conversar. Ele, muito bem informado, sempre tem algo pra comentar sobre qualquer assunto. Mas naquele momento, aquele silêncio estava falando mais do que as palavras. Talvez ele também estivesse sentindo a mesma dor que eu.

Fazia dois anos que esperávamos por uma gravidez. Cada mês era um suspense, cada atraso uma alegria, e cada teste de farmácia, uma derrota. Perdi a conta de quantas vezes Léo foi comprar um teste porque eu tinha certeza de que agora chegara a minha vez de ser mãe.

Agora estávamos ali, no carro, indo visitar o primo dele e sua esposa. Duas pessoas maravilhosas que só queriam ter filhos mais tarde, talvez daqui há uns 3 anos. Mas, sem planejamento algum, Ticiane engravidou.

Eu estava realmente feliz pela gravidez de minha amiga. Ela não estava feliz. Ainda não havia absorvido a idéia. Eu estava infeliz porque era dela, não minha aquela barriga. Foi um conflito que me deixou amargurada num primeiro momento. É tãolindo ver uma mulher grávida! ainda mais quando é uma amiga, uma irmã... quando será a minha vez?

Chegamos à casa deles e, dissipando o susto inicial, resolvemos visitar uma grande loja de artigos infantis. É ótimo escolher com minha amiga as roupinhas do bebê. Ela ainda não sabe o sexo da criança, então ficamos especulando pela loja: olha Tica... que lindo! Se for menino vai ficar fofo com esta aqui. E seguíamos animadíssimas pela loja, até que me toquei que, eu não sabia com que idade meu filho iria nascer. Se eu adotar uma criança com 2 anos? Não vou comprar um berço, nem aquelas roupinhas... fiz este comentário com ela, que, deu prova que é minha amiga de verdade: menina, aí você sai com a criança e ela mesmo te ajuda a escolher as roupas! Vai ser ótimo! - Tem coisas que só quem nos ama sabe contornar.

Capítulo 1 - A Madrugada

Era natural que estivéssemos tão apreensivos, afinal, o perigo não era imaginário. Um grande receio me tomava enquanto as horas avançavam pela madrugada. Poderíamos estar em casa, dormindo, protegidos - disse a mim mesma, já sentindo os efeitos do sono sobre a minha boa vontade. Enquanto recebíamos instruções, eu me perguntava sobre as motivações que levam as pessoas a fazer isso.

Porque estou aqui? - eu me perguntava. Porque eu estou fazendo isso? - fingia para mim mesma que não sabia a resposta. Duas horas da manhã e já era hora de sairmos para o campo. Cerca de setenta pessoas estavam naquele galpão pintado de verde, alugado especialmente para servir de ponto de apoio à organização das equipes. A maioria dos presentes já era muito experiente no assunto. Faziam este trabalho há muitos anos. Os iniciantes não precisavam nem se apresentar. O temor dominavam seus gestos e rostos, entregando em seus semblantes a prova da falta de intimidade com a situação.

Mesmo no lugar onde nos sentamos, lá no fundo do galpão, aonde não haviam janelas, estava muito frio. Fiquei feliz por estar à venda uma camisa com o emblema da missão – ela ajudava a nos aquecer. A camisa tinha o objetivo de chamar a atenção de quem olhasse para nosso grupo, e cumpria o desafio com grande desempenho. O tom amarelo-ovo só pode ter sido escolhido para cumprir este papel. Como o instinto de preservação do corpo contra o frio foi mais forte do que o instinto de preservação da estética contra a camisa amarelo-ovo, eu me vesti. Meu marido também. Pena que não era exatamente o número dele.

A nossa arriscada aventura parecia que não começaria nunca até que pediram para escolhermos um trajeto. Decidimos ficar na equipe de uma pessoa que nos transmitisse confiança. Cobertor preferencialmente para idosos ou casais – instruía um homem de pequena estatura – pois os jovens solteiros podem vender para usar drogas, continuou. Não pise no papelão, pois é a cama deles, não se afastem dos nossos carros, nunca fiquem sozinhos, fiquem de olho nas cestas de pão, não dêem dinheiro a ninguém em hipótese alguma – eu e meu marido nos entreolhamos preocupados - toquem neles mas façam assepsia assim que voltarmos, concluiu o homem que outrora fora morador de rua, assim como eram as pessoas a quem iríamos levar sopa, pão e cobertores nesta madrugada.

Este é um tipo de trabalho que exige mais amor do que coragem. E conhecer um ex-morador de rua é uma grande motivação. Sem muitos questionamentos nos unimos ao grupo daquele homem negro e magro, que escolheu o trajeto mais difícil da distribuição. Mas eu estava tão mergulhada em minha busca secreta que não dei muita atenção para o fato de estarmos indo para um dos bairros mais perigosos das redondezas.

Ao nos dirigirmos para nossos carros, carregando cestos, panelas quentes e muitos sacos, uma grande inquietação dominou meus pensamentos. E se ele estiver lá? – mais uma vez criei em minha mente uma cena: eu carregava o bebê nos meus braços. Ele estava enroladinho num lençol e não chorava. Eu podia sentir o cheirinho dele. Tocava os seus dedinhos alisava seu rostinho. Bia, rápido! - Léo me interrompeu, pedindo para abrir o carro, falando ofegante por conta do peso do panelão de sopa quente que carregava.

Agora não dava mais para desistir. Duas e quarenta da manhã. O índice de criminalidade da cidade nas alturas e nós aqui, em pleno Centro, local de grande distribuição de drogas da cidade. Doze cordeirinhos vestidos de amarelo-ovo. Olhei para o falante líder de nossa equipe e me senti mais confortada. Ele era um deles – pensei. E ele está aqui hoje porque alguém fez o que estamos fazendo. Nem concluí minha meditação sobre a grande transformação na vida daquele homem e ele fez sinal apontando para um grupo de moradores de rua que dormia sob a marquise de um edifício próximo.

Enquanto me preparava para sair do carro lembrei que durante o dia eu costumo fugir destas pessoas. Me desvio delas. Não olho em seus olhos. E justo de noite, enquanto as ruas estão desertas e não há policiamento, resolvi fazer isso.

Pude perceber que elas sabiam o que iria acontecer. Já deveriam estar acostumados. Batistas, espíritas, católicos, são muitas noites de sopa por mês. Mas havia apreensão no olhar. E era maior do que a que havia em mim. Neste momento só vinha em minha mente os casos terríveis de crimes contra moradores de rua que toda semana ilustravam os jornais. No primeiro instante eles olharam para nossas mãos. Talvez procurassem garrafas de álcool e fósforos, preocupados com a onda de assassinatos que estava acontecendo ultimamente. Entendi então a orientação sobre o grupo começar a cantar assim que fosse estacionando os carros. Eles também eram cordeiros.

Haviam homens e mulheres. Alguns adolescentes, alguns idosos. Alguns se levantaram, outros nos olharam com indiferença. Eu estava atrás do nosso carro, separando os pães enquanto Juliana colocava café nos copos. Léo distribuía cobertores enquanto conversava com dois homens sobre a possibilidade deles saírem das ruas e irem para o centro de recuperação. Sem ser percebido, um homem se aproximou de nós, pedindo mais pão. Instintivamente, Léo voltou o olhar dele para o fundo do carro. Percebendo o estranho movimento de uma pessoa diferente ao meu lado, imediatamente veio até nós. Nervosas, nós o servimos sob o olhar vigilante de Léo que teve uma reação muito amigável com ele. Apertou sua mão, conversou um pouco, permitiu-lhe repetir mais uma vez. Neste momento meus temores se dissiparam. Eles comiam satisfeitos e agradeciam muito. Naquele momento o que importava era que eram pessoas com fome.

Enquanto nos dirigíamos na busca de mais um grupo de moradores, eu me senti um pouco envergonhada por não ter comentado com o meu marido sobre minha real expectativa naquela noite. Deixei-o acreditar que aquela sensibilidade toda que eu apresentava em meu agir era por estarmos participando de um movimento tão altruísta. Mas no fundo, eu, egoísta, alheia ao processo que envolve uma adoção, acalentava a esperança de, de repente, no meio da noite, encontrar meu filho ali, numa daquelas calçadas. Muitas vezes sonhava com nosso encontro. Eu o levaria para casa, lhe daria banho, mingau, colocaria do meu lado para dormir. Mas até aquele momento não vi nenhuma criança nas ruas do Centro.

E o carro parou duas, três, quatro, perdi a conta de quantas vezes. Primeiro acabou o pão. Depois acabou o café. Por último, a sopa. Numa das últimas paradas, encontramos um morador de rua que me chamou a minha atenção não pelo seu estado físico, sujo, cinza como os outros. Mas foi a forma como ele se expressava que mostrava naquele homem algo diferente. Ele falava com facilidade, corretamente, sem gírias. Perguntou como poderia abandonar os vícios, e disse que gostaria de mudar. Quando falei o endereço do centro de recuperação, uma surpresa. Ele pediu que eu aguardasse porque pegaria sua agenda para anotar o endereço. Uma agenda? – retruquei em minha mente – ele abriu uma sacola suja feito de saco de farinha e sacou uma bela agenda de couro. Minhas suspeitas se confirmaram. Aquele homem magro e pálido, de olhar perdido era formado em filosofia. Na mesma universidade que eu formei em engenharia. Ele era um professor aposentado de escola pública. Todo mundo precisa de algum tipo de ajuda - pensei.

Nesta noite vi o que nunca imaginei. Trabalhadores dormindo na porta dos prédios para economizar o transporte, deitados sob a mesma laje aonde dormiam viciados em drogas e ladrões. Homens brigados com suas famílias, mulheres espancadas, expulsas de casa. Adolescentes que abandonaram seus pais por pedras de craque.

Encontrei um menino, que depois descobri, era uma menina. Ela disse que se vestia assim porque tinha medo dos estupros. Não queria passar por aquilo de novo, contou.

Pensei em meu filho vivendo nestas condições. A angústia começou a tomar conta de mim. Tanta mazela, tanta miséria. Absorvi a tristeza e falta de perspectiva e desejei estar ali com eles, deitada na calçada. Queria me sentar num cantinho daqueles edifícios e pensar na minha vida, entender o vazio que me sufocava. Eu criei tanta expectativa de encontrar meu filho nesta noite que a frustração gerada por perceber que não era ali o lugar aonde ele estaria me fez imergir na tristeza. Então um sentimento estranho me dominou. Saudade. Saudade? Como poderia estar sentindo saudade de alguém que não conheço ainda? Pensei estar enlouquecendo.


O céu começou a dar os primeiros sinais de que nossa aventura chegava ao fim. Subimos até a Praça da Sé e nos reunimos em frente a prefeitura. Foi então que vi as crianças. Deveriam ter pouco mais de oito anos e estavam completamente drogadas. Eles cercavam os carros das equipes e disputavam os cobertores que haviam sobrado em outra equipe. Roupas eram boas moedas de troca. Com um cobertor eles poderiam comprar drogas mais caras - disse uma mulher de voz rouca, que trabalhou na nossa equipe.

O sol estava nascendo e percebi que alguns daqueles meninos de rua começavam a se dirigir a um monumento afastado da praça. Intrigada, os segui de longe, imaginando que fossem buscar mais drogas. Um deles, com o cabelo que mais parecia o sol do meio-dia pegou, atrás da estátua, um tênis velho e uma roupa. Era uma farda. E aquelas crianças começaram a se vestir. Foi então que entendi que eles participavam de projeto social durante o dia. Uma Organização Não Governamental dava assistência a crianças de rua no Pelourinho, com atividades o dia inteiro. A mudança era incrível. De repente aqueles meninos que dormiram na rua e usavam drogas estavam fardados com uma camisa azul, bermuda e tênis. Há esperança - pensei.
Exaustos pela noite agitada e pelo turbilhão de sentimento pelo qual passamos, nos despedimos e fomos para casa. No caminho, conversamos muito sobre as mazelas da nossa cidade. Mergulhada em meus sentimentos, não ouvia mais o que Léo falava. Bia, aconteceu algo que eu não vi? Perguntou Léo, sem imaginar que a única coisa em que eu pensava era em como encontrar nosso filho e traze-lo para casa.