Bia Maia
Apresentação de Leozinho ao Senhor
Nosso primeiro Natal
Com a mamãe na piscina
Indo para a escolinha
Com o Papai na Base Aérea
A busca de uma mulher para realizar o seu sonho, encontrando na adoção o caminho para ser mãe.
Apresentação de Leozinho ao Senhor
Nosso primeiro Natal
Com a mamãe na piscina
Indo para a escolinha
Com o Papai na Base Aérea
Quando conheci Miguel, meu primeiro filho do coração, e dei a ele parte de mim, não pensava que poderia ter lutado por ele. Quando recebi um não daquela mulher, mesmo ela estando certa, não lutei por ele. Só aceitei. E imaginava que aesta altura ele estava bem, com uma família, sendo bem criado e amado e feliz. Mas Miguel morreu.
Quando minha sogra me contou, eu senti a dor de quem perdeu um filho. E perdi mesmo, porque em algum momento ele foi meu. E eu nunca esqueci o seu olhar.
Como me senti culpada por isso. Eu deveria ter lutado por ele. Porque ele ainda não havia sido adotado? 4 meses depois ele ainda estava no orfanato. É muita burocracia. Senti como se a burocracia trabalhasse com uma foice na mão, quando o assunto é criança órfã.
Ele morreu por causa de uma febre. Imagine como não estava fraco. Imagine como não estava carente. E quantos mais vão morrer? São filhos desesperados por pais e pais desesperados por filhos.
Pedi perdão a Deus por não ter lutado por ele. Miguel, me perdoe por não ter lutado pra te salvar.
Miguel foi um anjo que abriu meu coração para a adoção. Vou fazer por Leozinho o que não fiz por ele.
A música cantada no culto dizia: "Deus cuida de mim, à sombra das suas asas, Deus cuida de mim, eu amo a sua casa... e não ando sozinho, não estou sozinho pois sei, que Deus cuida de mim... Deus cuida de mim..."
Era ele. eu tinha certeza. O peguei no meu colo novamente e ele se aconchegou em mim. Meu marido estava com medo de carregar, pois não sabia segurar um bebê. Estávamos tão felizes que parecia que estávamos num sonho lindo. Mas para este sonho começar a ser real, eu precisava de uma assinatura.
Deixamos nosso filho com minha mãe na casa de minha tia e começamos nossa busca. Fomos na casa da prima damãe biológica, próxima dali. Ela já havia voltado para a roça onde morava. Duas primas delas nos acompanharam até lá.
Passamos na casa da avó, para ver se ela não estava lá. Nada. E seguimos caminho para a roça. Muita estrada, muito asfalto. Foram mais ou menos mais 20 minutos de estrada e chegamos na casa dela. Era uma casinha de blocos, sem reboco. Telhas de cimento e muitas crianças. Sobrinhos dela. Uma mulher não muito feliz atendeu a porta e disse que ela estava na casa de uma amiga.
Eu já estava ficando preocupada. “Meu Deus, será que ela desistiu e não quer que a encontremos?” – era o que vinha na minha cabeça. E fomos para a casa da tal amiga. Estrada de barro. Mais 20 minutos. O minutos mais longos de minha vida.
As primas dela eram simpáticas. Imaginei como seria o nosso encontro. Enquanto ainda andávamos pela estrada uma das primas exclamou: ”olha ela ali!”. Alex parou bruscamente o carro. A prima dela pulou do carro e a chamou. A estrada tinha árvores que me impediam de ver a mulher. Só vi que alguém se aproximava. Era uma mulher morena. Coberlos negros, crespos. Finalmente o rosto. E um inesperado sorriso. Enorme sorriso. Tive medo, mas procurei mostrar confiança. Me apresentei e fui direto ao assunto: “para sairmos da cidade com se filho, precisamos que assine uns papéis e nos dê cópia de seus documentos”.
Ela prontamente entrou no carro e disse para seguirmos para a casa dela. Quando ela sentou no carro, Alex mal tinha dado a partida e eu perguntei: “menina, você não vai se arrepender disso?” – é óbvio que eu queria ouvir um não. E foi o que eu ouvi. “Eu ainda não senti saudades dele”, foi a resposta. Fiquei pensando nesta frase o caminho todo. “Ainda” foi a palavra que mais me preocupou.
Chegamos na casa dela e entramos. A irmã se retirou da sala. Ela era contra a doação do menino. As filhas da irmã dela eram crianças lindas. Mas o estado de pobreza as maltratava. Nos acomodamos no humilde sofá e li a declaração pra ela. Ela estava nervosa, não queria ler. Acho que estava com vergonha, não sei.
Mais uma vez, antes dela assinar, perguntei se ela tinha certeza. Ela, de novo, falou aquela frase “ainda não seni saudades dele”. Eu fiz de propósito. Perguntei de novo porque sabia que a resposta seria essa. Era a oportunidade que eu tinha pra dizer a ela o seguinte: “quando você sentir saudades dele ele vai estar muito longe daqui”. Ela me encarou, entendendo a seriedade da atitude. E assinou assim mesmo.
Alex saiu com as primas para tirar cópias dos documentos enquanto assinávamos tudo. A mãe dela não estava lá. Expliquei pra ela que haveria em Salvador uma audiência com o juiz, que assim que fosse marcada ela seria informada, e eu providenciaria tudo para que fosse levada até o juizado.
Alex retornou. Levantamos para ir embora. Não nos tocamos hora nenhuma. Nem quando nos apresentamos, nem quando nos despedimos. Não havia clima para beijinhos, abraços ou apertos de mão. Não era uma amizade, um favor, ou um negócio. Era a doação de um filho. Mantivemos uma distância. Tenho certeza que ela sentiu uma dor. Pelos olhos dela dava pra ver. Mas ela também viu meus olhos. Agora, o menino era meu.
Entramos no carro e antes de irmos bati uma foto da casa. A irmã dela apareceu na janela. Ela não gostava daquilo. Não gostava de nós. Queria o sobrinho dela ali, e não com estranhos.
Chegamos na casa de minha tia e ele estava dormindo. Eu não fazia idéia de como agir. Não sabia fazer um mingau sequer! E não havia tempo para muita coisa. Precisávamos pegar a estrada e chegar em Salvador ainda com o dia claro.
Depois desta reunião me animei e resolvi comprar o máximo de itens para meu filho. Móveis, cabides, toalhas, tudo o que atendesse à uma criança de até dois anos, menino ou menina.
Era natural que estivéssemos tão apreensivos, afinal, o perigo não era imaginário. Um grande receio me tomava enquanto as horas avançavam pela madrugada. Poderíamos estar em casa, dormindo, protegidos - disse a mim mesma, já sentindo os efeitos do sono sobre a minha boa vontade. Enquanto recebíamos instruções, eu me perguntava sobre as motivações que levam as pessoas a fazer isso.
Porque estou aqui? - eu me perguntava. Porque eu estou fazendo isso? - fingia para mim mesma que não sabia a resposta. Duas horas da manhã e já era hora de sairmos para o campo. Cerca de setenta pessoas estavam naquele galpão pintado de verde, alugado especialmente para servir de ponto de apoio à organização das equipes. A maioria dos presentes já era muito experiente no assunto. Faziam este trabalho há muitos anos. Os iniciantes não precisavam nem se apresentar. O temor dominavam seus gestos e rostos, entregando em seus semblantes a prova da falta de intimidade com a situação.
Mesmo no lugar onde nos sentamos, lá no fundo do galpão, aonde não haviam janelas, estava muito frio. Fiquei feliz por estar à venda uma camisa com o emblema da missão – ela ajudava a nos aquecer. A camisa tinha o objetivo de chamar a atenção de quem olhasse para nosso grupo, e cumpria o desafio com grande desempenho. O tom amarelo-ovo só pode ter sido escolhido para cumprir este papel. Como o instinto de preservação do corpo contra o frio foi mais forte do que o instinto de preservação da estética contra a camisa amarelo-ovo, eu me vesti. Meu marido também. Pena que não era exatamente o número dele.
A nossa arriscada aventura parecia que não começaria nunca até que pediram para escolhermos um trajeto. Decidimos ficar na equipe de uma pessoa que nos transmitisse confiança. Cobertor preferencialmente para idosos ou casais – instruía um homem de pequena estatura – pois os jovens solteiros podem vender para usar drogas, continuou. Não pise no papelão, pois é a cama deles, não se afastem dos nossos carros, nunca fiquem sozinhos, fiquem de olho nas cestas de pão, não dêem dinheiro a ninguém em hipótese alguma – eu e meu marido nos entreolhamos preocupados - toquem neles mas façam assepsia assim que voltarmos, concluiu o homem que outrora fora morador de rua, assim como eram as pessoas a quem iríamos levar sopa, pão e cobertores nesta madrugada.
Este é um tipo de trabalho que exige mais amor do que coragem. E conhecer um ex-morador de rua é uma grande motivação. Sem muitos questionamentos nos unimos ao grupo daquele homem negro e magro, que escolheu o trajeto mais difícil da distribuição. Mas eu estava tão mergulhada em minha busca secreta que não dei muita atenção para o fato de estarmos indo para um dos bairros mais perigosos das redondezas.
Ao nos dirigirmos para nossos carros, carregando cestos, panelas quentes e muitos sacos, uma grande inquietação dominou meus pensamentos. E se ele estiver lá? – mais uma vez criei em minha mente uma cena: eu carregava o bebê nos meus braços. Ele estava enroladinho num lençol e não chorava. Eu podia sentir o cheirinho dele. Tocava os seus dedinhos alisava seu rostinho. Bia, rápido! - Léo me interrompeu, pedindo para abrir o carro, falando ofegante por conta do peso do panelão de sopa quente que carregava.
Agora não dava mais para desistir. Duas e quarenta da manhã. O índice de criminalidade da cidade nas alturas e nós aqui, em pleno Centro, local de grande distribuição de drogas da cidade. Doze cordeirinhos vestidos de amarelo-ovo. Olhei para o falante líder de nossa equipe e me senti mais confortada. Ele era um deles – pensei. E ele está aqui hoje porque alguém fez o que estamos fazendo. Nem concluí minha meditação sobre a grande transformação na vida daquele homem e ele fez sinal apontando para um grupo de moradores de rua que dormia sob a marquise de um edifício próximo.
Enquanto me preparava para sair do carro lembrei que durante o dia eu costumo fugir destas pessoas. Me desvio delas. Não olho em seus olhos. E justo de noite, enquanto as ruas estão desertas e não há policiamento, resolvi fazer isso.
Pude perceber que elas sabiam o que iria acontecer. Já deveriam estar acostumados. Batistas, espíritas, católicos, são muitas noites de sopa por mês. Mas havia apreensão no olhar. E era maior do que a que havia em mim. Neste momento só vinha em minha mente os casos terríveis de crimes contra moradores de rua que toda semana ilustravam os jornais. No primeiro instante eles olharam para nossas mãos. Talvez procurassem garrafas de álcool e fósforos, preocupados com a onda de assassinatos que estava acontecendo ultimamente. Entendi então a orientação sobre o grupo começar a cantar assim que fosse estacionando os carros. Eles também eram cordeiros.
Haviam homens e mulheres. Alguns adolescentes, alguns idosos. Alguns se levantaram, outros nos olharam com indiferença. Eu estava atrás do nosso carro, separando os pães enquanto Juliana colocava café nos copos. Léo distribuía cobertores enquanto conversava com dois homens sobre a possibilidade deles saírem das ruas e irem para o centro de recuperação. Sem ser percebido, um homem se aproximou de nós, pedindo mais pão. Instintivamente, Léo voltou o olhar dele para o fundo do carro. Percebendo o estranho movimento de uma pessoa diferente ao meu lado, imediatamente veio até nós. Nervosas, nós o servimos sob o olhar vigilante de Léo que teve uma reação muito amigável com ele. Apertou sua mão, conversou um pouco, permitiu-lhe repetir mais uma vez. Neste momento meus temores se dissiparam. Eles comiam satisfeitos e agradeciam muito. Naquele momento o que importava era que eram pessoas com fome.
Enquanto nos dirigíamos na busca de mais um grupo de moradores, eu me senti um pouco envergonhada por não ter comentado com o meu marido sobre minha real expectativa naquela noite. Deixei-o acreditar que aquela sensibilidade toda que eu apresentava em meu agir era por estarmos participando de um movimento tão altruísta. Mas no fundo, eu, egoísta, alheia ao processo que envolve uma adoção, acalentava a esperança de, de repente, no meio da noite, encontrar meu filho ali, numa daquelas calçadas. Muitas vezes sonhava com nosso encontro. Eu o levaria para casa, lhe daria banho, mingau, colocaria do meu lado para dormir. Mas até aquele momento não vi nenhuma criança nas ruas do Centro.
E o carro parou duas, três, quatro, perdi a conta de quantas vezes. Primeiro acabou o pão. Depois acabou o café. Por último, a sopa. Numa das últimas paradas, encontramos um morador de rua que me chamou a minha atenção não pelo seu estado físico, sujo, cinza como os outros. Mas foi a forma como ele se expressava que mostrava naquele homem algo diferente. Ele falava com facilidade, corretamente, sem gírias. Perguntou como poderia abandonar os vícios, e disse que gostaria de mudar. Quando falei o endereço do centro de recuperação, uma surpresa. Ele pediu que eu aguardasse porque pegaria sua agenda para anotar o endereço. Uma agenda? – retruquei em minha mente – ele abriu uma sacola suja feito de saco de farinha e sacou uma bela agenda de couro. Minhas suspeitas se confirmaram. Aquele homem magro e pálido, de olhar perdido era formado em filosofia. Na mesma universidade que eu formei em engenharia. Ele era um professor aposentado de escola pública. Todo mundo precisa de algum tipo de ajuda - pensei.
Nesta noite vi o que nunca imaginei. Trabalhadores dormindo na porta dos prédios para economizar o transporte, deitados sob a mesma laje aonde dormiam viciados em drogas e ladrões. Homens brigados com suas famílias, mulheres espancadas, expulsas de casa. Adolescentes que abandonaram seus pais por pedras de craque.
Encontrei um menino, que depois descobri, era uma menina. Ela disse que se vestia assim porque tinha medo dos estupros. Não queria passar por aquilo de novo, contou.
Pensei em meu filho vivendo nestas condições. A angústia começou a tomar conta de mim. Tanta mazela, tanta miséria. Absorvi a tristeza e falta de perspectiva e desejei estar ali com eles, deitada na calçada. Queria me sentar num cantinho daqueles edifícios e pensar na minha vida, entender o vazio que me sufocava. Eu criei tanta expectativa de encontrar meu filho nesta noite que a frustração gerada por perceber que não era ali o lugar aonde ele estaria me fez imergir na tristeza. Então um sentimento estranho me dominou. Saudade. Saudade? Como poderia estar sentindo saudade de alguém que não conheço ainda? Pensei estar enlouquecendo.
O céu começou a dar os primeiros sinais de que nossa aventura chegava ao fim. Subimos até a Praça da Sé e nos reunimos em frente a prefeitura. Foi então que vi as crianças. Deveriam ter pouco mais de oito anos e estavam completamente drogadas. Eles cercavam os carros das equipes e disputavam os cobertores que haviam sobrado em outra equipe. Roupas eram boas moedas de troca. Com um cobertor eles poderiam comprar drogas mais caras - disse uma mulher de voz rouca, que trabalhou na nossa equipe.
O sol estava nascendo e percebi que alguns daqueles meninos de rua começavam a se dirigir a um monumento afastado da praça. Intrigada, os segui de longe, imaginando que fossem buscar mais drogas. Um deles, com o cabelo que mais parecia o sol do meio-dia pegou, atrás da estátua, um tênis velho e uma roupa. Era uma farda. E aquelas crianças começaram a se vestir. Foi então que entendi que eles participavam de projeto social durante o dia. Uma Organização Não Governamental dava assistência a crianças de rua no Pelourinho, com atividades o dia inteiro. A mudança era incrível. De repente aqueles meninos que dormiram na rua e usavam drogas estavam fardados com uma camisa azul, bermuda e tênis. Há esperança - pensei.
Exaustos pela noite agitada e pelo turbilhão de sentimento pelo qual passamos, nos despedimos e fomos para casa. No caminho, conversamos muito sobre as mazelas da nossa cidade. Mergulhada em meus sentimentos, não ouvia mais o que Léo falava. Bia, aconteceu algo que eu não vi? Perguntou Léo, sem imaginar que a única coisa em que eu pensava era em como encontrar nosso filho e traze-lo para casa.